quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sangue do seu sangue

Muita coisa está em jogo nessa família...

mas que família?

a instituição família?
a polícia?

ou a família como um todo
a família dos seres humanos...
os mesmos que traem ou corroem
também os mesmo que ajudam ou perdoam

Isso pode ir longe demais
e vai mesmo... além do que você imagina.

CAPÍTULO I

Soldado Barbosa tem um dom e não revela. Não é a toa que escolheu ser policia militar. Poderia subir hierarquicamente, porém prefere ficar nas ruas, onde as coisas acontecem. Pois é junto as classes mais baixas o seu verdadeiro lugar.

Quando criança brincava nos trilhos da Cidade Industrial de Curitiba (CIC). Um dia, sentado com seus bonecos doados pela comunidade, resolveu fazer um acampamento pra seus amigos imaginários. Foi buscar uns gravetos entre um barranco, uma viela em que passava esgoto e uns arbustos...

O choque natural! Até hoje não esquece o que viu. Um corpo! Homem grande, gordo, cara de italiano. A primeira reação: saiu correndo pra chamar alguém. Encontrou alguns adolescentes jogando futebol num campinho ao lado de uma praça. Não conseguia falar, ofegava. Pegou um adolescente pelo braço e tentou levá-lo. Conseguiu. Foram até o corpo...

Ao chegarem, os meninos viram aquele homem morto... correram buscar alguém. Encontraram um amigo, depois esse foi até a liderança comunitária e essa chamou as autoridades, imprensa e família. O menino ficou por perto, chocado. Sua mãe não estava em casa, era difícil encontrá-la, trabalhava como doméstica. Tinha um irmão, mas já estava nas ruas... eram os três e mais ninguém.

Na retirada do corpo, algo chamava o menino em direção ao cadáver... ele foi até o homem gordo. A mão do defunto estava caída pra fora da maca, o menino a pegou sem saber o “por quê?”. Um filme surgiu como um raio em frente aos seus olhos. O garoto se assustou e desmaiou – foi como uma descarga de energia. Ele só recuperou a consciência na cama de um pronto socorro.

...

Aquele homem gordo de joelhos, com jóias no pescoço, um belo relógio no braço e um 38 na cabeça. “Pelo amor de deus, não me mate” – dizia ele. “Agora já era Bola de Neve, tá sendo cobrado meu chapa” – disse um homem fardado, no uniforme os dizeres... Soldado Peixoto.

A cena do crime ficou clara, o disparo, os miolos espalhados no esgoto e, por fim, o corpo aonde foi encontrado. Como se fosse um filme, o menino, ao tocar o corpo, viu o que aconteceu.

Isso é um dom? Revelações de crimes através do toque nos cadáveres?

Essa foi à primeira vez. Acordou com sua mãe o olhando na cama, ao lado seu irmão drogue, com os olhos fundos e vazios.

Edson Barbosa, Edinho e hoje Soldado Barbosa... abre os olhos e sabe o que fazer daquele momento em diante. Uma criança, uma perseguição, um objetivo de vida.

...

Soldado Barbosa conviveu em meio ao caos familiar. Sua mãe contava que o pai foi embora levando outro irmão nos braços. Sabia que tinha outro irmão, também sabia que seu irmão, o que conhecia, tinha pouco tempo de vida... era da vida louca, vivia na rua... essa era sua casa.

Passou pelo ensino médio, fez academia até tornar-se militar. Estava nas ruas. Seu irmão mais velho também estava nas ruas: era um pequeno traficante, fazia correria ali na região da Praça Tiradentes e Largo da Ordem, centro de Curitiba.

Só passava pedra (crack) e maconha, de bicicleta velha. Era questão de tempo pra morte o pegar; os irmãos se encontravam por aí, mas Soldado Barbosa não aliviava, nem pro irmão, pois tinha fama de durão.

...

“Segura esse safado” – “Pelo amor de deus eu não fiz nada” – e uma paulada na cabeça, depois duas, depois três... sangue espalhado pelo chão. Soldado Barbosa solta o braço da vítima, já sabe quem são os criminosos, são sempre os mesmos rostos na noite... já tinha flagrado os malacos próximos aos bairros Parolin e Guaíra, sempre rondando a Presidente Kennedy.

Chegando a região, Soldado Barbosa e seu parceiro avistaram próximos a um ponto de ônibus três jovens. Hoje ninguém se preocupa com viatura. Porém se tratando desse policial é bom ter cuidado, pois ele pode saber seus segredos.

O policial viu e reconheceu os criminosos. Pediu pro seu parceiro parar o carro. “Vou descer” – disse Barbosa. “Está maluco? Tenho família porra, não vou me arriscar assim!” – retrucou o outro PM. Sabendo do perigo, Barbosa não esperou seu companheiro lhe dizer o que tinha de fazer, saiu dando voz de prisão, gritando e pegando seu 38.

Um dos três jovens tentou ir pra trás do ponto de ônibus, Soldado Barbosa não esperou pra ver. Um tiro certeiro na perna, o jovem caiu gritando. Os outros dois levantaram as mãos. “Posso queimar vocês, mas não quero atirar em mais ninguém. Sei quem segurava o moleque e quem deu as pauladas. Porra... eu sei quem matou o moleque semana passada. Tô falando bobagem? Acho que não caralho” – os malacos consentiram com a cabeça. Naquele momento já estava chegando outros PM´s, além da ajuda médica pro ferido a bala.

...

A freqüência que crimes como esse eram desvendados pelo policial fazia dele um perito. Foi convidado, foi praticamente intimado... hierarquicamente à subir, mas melhor salário não o intimidava... isso dava mais fama à ele... talvez era só status que queria.

Seu objetivo era encontrar Soldado Peixoto, mas ele não estava mais no mapa policial. Depois daquele crime, os arquivos da PM não indicavam transferência, nada, nenhum dado sobre o tal Peixoto.

Soldado Barbosa ainda era morador da CIC. Morava numa casa melhor, com sua mãe. Tentou ajudar, por diversas vezes, seu irmão, porém teve de expulsá-lo. Na verdade seu inferno estava apenas começando. Seu sono estava prestes a ser tirado.

Numa noite difícil de trabalho, voltou pra casa e encontrou sua mãe no quarto, com o pescoço cortado. Sangue por toda parte. A casa toda arrebentada, destruída. Soldado Barbosa ao ver sua mãe caída, morta, tonteou, quase caiu. Se escorou na parede e respirou com dificuldade. Começou a chorar compulsivamente, gritou “NÃO!” com toda força.

Os vizinhos ouviram. Quando chegaram viram aquele homem sentado ao lado da mãe segurando suas mãos e chorando. Chegaram polícia e ambulância. Os companheiros do policial o tiraram do local, não deixaram mais ele ver sua mãe. Depois de algumas horas, o PM “esfriou” a cabeça. No interrogatório não lembrava de nada.

“As únicas digitais são as suas Barbosa” – foi o que disse o delegado. O PM pediu pra ver sua mãe mais uma vez. Foi até o necrotério, lá estava ela, mórbida. Ele segurou sua mão, fechou os olhos e nada aconteceu...