terça-feira, 19 de abril de 2011

Das Neves e sua premonição

Está tudo cinza mais uma vez na vida de Das Neves. Ali está ele no balcão do bar, cabeça baixa, olheiras profundas, corpo cansado, mas a mente trabalha a milhão por hora.

Então ele espera o cara do bar se aproximar, a espelunca está quase vazia. Ele diz:

- Mais um dia que me apunhalei pelas costas (cabeça baixa sem olhar pra quem fala).
- Como assim Das Naves?
- Essa belezura aqui (mostra sua faca) é um punhal bem afiado, mas não é ela que me ferra... meus problemas são outras facadas, que me matam aos poucos!
- O que é isso meu amigo! Do que você está falando?
- São facadas que não matam... queria a morte de primeira. Ao invés disso, me cutuco como se tivesse uma mania obsessiva.

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Das Neves está mais equilibrado, com palavras colocadas no seu devido lugar. Talvez seja a ressaca moral. Não que ele não esteja maluco. Ele está. Vem de uma jornada de dias dentro da sua nova casa. Uma espelunca atrás de uma área comercial, em que existem precárias quitinetes.

- Tenho um capeta em cima desse ombro aqui (aponta pro ombro direito). É o capetinha no ouvido todo dia. Já me disseram que tem o capeta nesse ombro e o anjinho no outro. Isso é besteira! Porra... ou então meu anjo está de férias faz alguns anos.
- O que é isso cara... você está muito triste hoje. Esses dias mesmo você estava todo eufórico, chegou a assustar um cara aqui no bar!
- Pois é... mas não é todo dia que a loucura faz bem pra mim cara! Porra... estou de olho no seu bar, esperava você abrir pra vir aqui. Não aguentava mais ficar lá na minha casa.

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Antes de chegar ao bar, Das Neves já havia caminhado alguns quilômetros dentro da sua nova casa.

“Esfrego minhas mãos enquanto cai a água da torneira. O lixo do meu banheiro é um festival de coisas estranhas. Volto pro quarto e parece que o lixo do meu quarto está pior que o lixo do meu banheiro. Volto pro banheiro. Água na cara não resolve, já bebi todo meu gole. Meu corpo não entende mais nada, ele pede algo que o surpreenda!” – Das Neves.

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- Hoje fui lá na Vila.
- Que vila Das Naves?
- Lá na Vila Pinto, fui no lado de baixo da Vila. Fazia tempo que não passava na Guabirotuba. Porra, saí de lá faz uma tempão... não dava pra trampar direito, a molecada zuava do meu caminhão direto. Era foda... meus amigos das antigas já foram pra fita. Que merda cara... faz muito tempo que o bicho pega por lá...
- Pois é... lá é muito foda cara!
- Eu sei meu irmão... mas você não viu no jornal? Teve um acerto entre umas galera lá. Tão por uns tempos em paz. Aí aproveitei pra chegar lá e ver um pessoal conhecido.
- Pô... legal Das Neves. E aí... você deveria estar feliz!
- A minha galera já era, eu sou das antigas... a molecada tomou conta... até os que acabavam com meu caminhão já foram... agora é uma nova geração... espero que depois dessa trégua, eles vejam como é bom caminhar pelas ruas sem ter uma bala te perseguindo.

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Em Curitiba a Vila Torres, Vila Pinto ou Vila Capanema é a favela mais antiga. Nessa favela não havia uma trégua nos últimos 15 anos. A Rua Guabirotuba era conhecida como “linha proibida”.

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- Mas mesmo assim fiquei um pouco feliz. Vi uns cabeça que não encontrava fazia um tempão.
- É lá que tem o pessoal da reciclagem né?
- Pô... não to ligado cara.
- Tem sim... na comunidade lá tem a maior galera que recicla lixo de Curitiba.
- Isso é doido né... isso é legal.

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A Vila Torres tem 8,5 mil moradores. A molecada comanda o tráfico e tem como tática apavorar os mais jovens, intimidar a família e através do medo tomar conta das ruas.

O termômetro da violência na Vila é a pelada de futebol. Quando dava treta entre as gangues o campo ficava vazio, os peladões eram suspensos e não podia ter camisa de time da Vila nos varais. Esse era o sinal de tensão.

Após essa trégua. O papo por lá não é outro que não a volta dos peladões.

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- Pelo menos eu vi o Baleia. Ah o espetinho do Baleia (conta com ar nostálgico Das Naves)... aquilo sim que era espetinho do bom... sei lá o que era aquilo. Se era cachorro, gato, carne de boi, de cabrito... sei lá que porra era aquela... só sei que comia de monte.
- E dessa vez comeu?
- Não... mas encontrei ele lá... ele está bem... tem um museu, tá ligado? Tem um monte de foto da galera das antiga por lá. Uns livro lá que ele cata no lixo. O Baleia é foda. Quando o bicho pegava por lá... a galera ia lá com ele.
- Legal cara! Não entendo por que você está triste?
- Cara... eu estou acordado faz tempo... minha cabeça está a milhão... você fica na locuragem e acaba ligando a TV, estou quase doido. Se a Vila está na boa... eu vejo uns cara matando neguinho a facada na rua... por causa de treta com putaria. Você viu na TV?
- Vi sim... mataram uma bicha lá pra cima... no Mato Grosso eu acho...
- E daí que o cara é bicha porra? Você tem alguma coisa contra bicha porra?
- Não não... só é forma de falar cara... nada a ver...
- Pode crer mano... olha lá ein... essa parada aí de achar que um é melhor que o outro já era. Olha eu... estou aí... fodido... separado... mas uma coisa que eu aprendi por aí... e olha que eu e meu caminhão já rodamos algum lugar nessa vida... posso dizer cara... filha da puta do cara racista... esses caras não sabem o que é a vida! Tá ligado no que eu to falando?
- Sim...

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Das Neves não demonstrava a mesma euforia de dias atrás. Talvez devido à quantidade de dias que ficou por aí... na loucura que ele está sempre metido.

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- Mas aí Das Neves... você disse que está separado?
- Porra cara... essa locuragem toda aí ferrou minha relação... tá ligado?
- Então está na hora de mudar né?
- Nada...
- Como assim?
- Estou no aprendizado ainda.
- O que quer dizer isso?
- Tem coisas que você entende como quiser! Isso eu trago da estrada...

Das Neves tirou uma peteca do bolso e esticou no balcão uma carreira. Cheirou aquilo na frente do cara do bar, que olhou com espanto, aterrorizado. Das Neves estava puto da vida, sem esperança e perspectiva. Separado, entregue a loucura. Mas sua visão é só uma... só o que aprendeu com a vida.

Ele arrancou sua faca e fincou na madeira do balcão. Começou a escrever uma frase sob olhar aterrorizado do bodegueiro.

Deixou sua premonição:

“Se não come as baratas hoje, nunca vai comer as caras amanhã!”.