quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dois pastores e um pinscher ‘emaconhado’




E lá está o casal de pastores. Eles caminham no Parque Barigui, famoso ponto turístico da capital paranaense. Ambos falam sobre dinheiro, ascensão social da ‘raça’ pastor e a vantagem de ser rico à custa da crença das pessoas. Também comentam sobre estratégias pra continuar a iludir seus fieis.

Já o pinscher não anda legal. Não segue o mesmo caminho dos seus donos, esses que precisam apertar a coleira toda hora pra por o pequeno cão nos trilhos.

O bichinho atrapalha a caminhada dos pastores. Cruza a frente dos seus donos, rosna e late pra quem passa por eles.

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Há uma discussão por aí sobre o pinscher: se ele é ou não é um cachorro chato. Mas isto não vem ao caso.

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- Que cachorro chato! – diz a pastora.
- Por que compramos? Você lembra?
- Pra caminhar no parque. Há sempre novos fieis a serem conquistados... não é?
- Mas ele rosna e late toda hora. Até quando falamos. Atrapalha tudo...
- Acho que é porque ele é novinho!

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Nem o próprio cachorro acredita nas pregações dos pastores. Como é que pode tanta gente acreditar! Mas isso também não vem ao caso.

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Perto da beira do lago Barigui está sentado ao pé de uma árvore um jovem. Ele fuma um baseado tranquilamente, bem sossegado.  

- Olha aquele menino! Meu Jesus Maria José... ele tá fumando maconha? – diz a pastora.
- Sim, está.
- Cristo! Ele tá perdido na droga o coitado.
- Esse vai morrer de overdose logo logo. Daqui uns dias ele vai aparecer no jornal!
- Vou orar pra sua alma!
- Amém!

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Então inesperadamente o pequeno cão vai a toda velocidade em direção ao jovem e o morde sua panturrilha. Abocanha a ‘pantuca’ do rapaz. Crava os dentes e arranca sangue...

Os pastores não esperavam a fuga repentina do pinscher. Foi um segundo de distração e o cachorro fugiu! O casal se sentiu traído pelo cão adestrado.

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Mesmo após a mordida, o jovem continuou a tragar seu baseado e apreciar o céu, as árvores, o lago...

Já o pinscher, após o ataque kamikaze, voltou aos pastores com gotinhas de sangue entre os dentes. O pastor gostou pela primeira vez do pequeno cão. “Tá aprendendo” – comentou quando o cachorro retornou aos seus donos.

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Após alguns metros que caminharam, da mesma forma repentina que o cachorro fugiu, agora ele parou! Se antes latia e rosnava; atrapalhava a caminhada dos pastores, agora ele subitamente ficou imóvel! Aparentemente reflexivo.  

Não adiantou o casal se ajoelhar e chamar o bichinho. Nem bater palma, cantar, rezar, assoviar... nada fez o pinscher sair do lugar...

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O pequeno cão observou ao seu redor e vagarosamente foi em direção a um arbusto. Aparentemente o pinscher se sentia bem. Então ele sentou em frente aos pequenos galhos e comeu lentamente a vegetação, apreciando cada folha.

Os dois pastores se olham sem entender:

- O que aconteceu com esse bicho? – disse o pastor.
- Não sei.
- Acho que foi a maconha.
- Que maconha?
- Do cara que ele mordeu.
- Será?
- Claro! O diabo está no sangue das pessoas. Vai saber o que tem no sangue daquele ‘emaconhado’.
- Será?
- Você tem alguma dúvida? Você não crê na minha palavra?
- Claro!
- Então?
- Ah... então se for assim, sim.
- Ótimo.
- Aí meu santo!  - se assustou a pastora e apontou pro pinscher.

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E lá está o pequeno pinscher! Em posição de ataque. Seus movimentos de vai e vem se intensificam. Sim! Ele fode agora uma pequena árvore, ao lado do arbusto.

Então o pequeno cão começa a amolecer. Sua perninha não dá conta de suportar todo o peso do resto do seu corpo. Suas patinhas dianteiras, apoiadas na árvore, com suas unhas pontiagudas agarram o tronco com mais força!

O pinscher goza!

Porém no auge da foda os pastores fodem com a porra toda.

Interrompem a transa do pequeno cão.

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Como se latissem, os pastores blasfemam contra o pinscher. Eles gritam para os deuses, se culpam, discutem entre si...

Tudo isso chamou a atenção do jovem ao pé da árvore, que passou a observar, já com a ponta apagada entre os dedos, a situação. “Estou viajando legal!” – pensou ao ver um casal dando sermão num cachorro.

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Foi então que o pinscher latiu!

Mas não foi um latido qualquer. Aquilo soou diferente. Um som jamais ouvido antes pelos pastores.

Eles se calaram! Todos se calaram! O latido foi tão alto que todos que caminhavam pelo Parque Barigui escutaram! E todos pararam o que faziam.

E o pinscher latiu mais uma vez, agora também uivou! E uivou mais uma vez, num compasso indescritível. Aquilo hipnotizou a todos.

Os únicos que não foram atingidos pelo som do pinscher foram os outros animais do parque; esses que começaram a se aproximar do pequeno cão. E logo uma grande quantidade de cachorros, gatos, pássaros... tudo que tinha vida no parque, se reuniu em volta do pequeno animal.

Aí o pinscher, em mais um grito de liberdade, guiou a todos numa corrida frenética em direção ao lago do Barigui. Todos entraram na água. Uma festa indescritível. Faziam todo tipo de barulho. Uma orquestra selvagem. Pulavam e mergulhavam. 

Naquele momento não se ouvia carros na estrada. Música nos carros. Os fones de ouvido se renderam ao canto primitivo dos animais.

Os peixes saltavam e faziam pose no ar! Depois mergulhavam e como se fossem impulsionados pela água, voavam novamente.

Os pássaros subiam ao céu entre as nuvens e desciam velozmente em belos rasantes a mergulhar na água... para depois voltar a voar! E os movimentos se repetiam numa beleza única, sincronizados...

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Viva a liberdade! Aquilo foi um canto de liberdade!

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Então o pequeno cão repentinamente volta a si. Seus olhos ainda baixos não estão mais tão vermelhos.

Ele olha os pastores que voltam e emitir som de vossas bocas.

Puto da cara pela gozada interrompida ele acoca e dá uma cagada. Então vai de cabeça baixa em direção aos seus donos, com cara de cachorro carente...

- Aí que bonitinho! Não faça mais isso tá bom? – e dá-lhe blá blá blá da pastora, que pega seu pinscher no colo e faz carinho no animal.

E enquanto isso o pastor recolhe a bosta do pequeno cão com uma sacola de mercado.