terça-feira, 17 de março de 2009

As fotos da alma

CAPÍTULO III

Entre uma árvore e outra, caminho sem rumo. Esta repetição me irrita. Sempre as mesmas árvores, o mesmo aspecto mórbido das ruas, a mesma esquina, o mesmo bueiro. Será que estou parado? O que está acontecendo? Isto deve ser um castigo. Não tenho a mínima noção do tempo que caminho, não sinto cansaço.

Não tenho como negar, estou morto e vim pro inferno. Isto é fato em minha “vida”. Essa tortura deve ser coisa do capeta mesmo. Sento no meio fio pra passar todo tempo que existe num lugar que eu nem sei onde fica. Nada parece que vai acontecer, esta é a pior tortura. A certeza da estagnação é a pior coisa que podia me acontecer.

Lembro das fotos que antes vi naquela espécie de museu. “Queria ver minha morte!”, penso alto e um vento sopra, as árvores mexem. “Opa, algo aconteceu!”. É morte a palavra chave. Ela é que devo proclamar e soltar aos ventos do além com uma força reprimida.

“Não tenho medo da morte, já estou morto, apareça pra negociar. Não era isso que queria?”. O vento aumenta e uma árvore se movimenta empurrada pela força do vendaval. Ela para bem onde estou. “Clame pela morte e suba. Levarei-te onde precisa”, me disse ela.

Gritei pela morte e saímos na velocidade do vento em direção a fumaça. Entramos no meio do bar cadavérico novamente. Percebo que estou sentado em frente daquilo que agora já sei ser o capeta.

...

Resolvi ficar a vontade. Estava cansado disso tudo. “Se estou morto, vou ver o que acontece no outro lado da vida. No além”.

...

- Nunca me imaginei negociar com o capeta – já chego agressivo.
- Pois é – me respondeu aquela coisa estranha.
- Não tem nada pra beber no seu boteco. Só esse cheiro de podre, essas caveiras. O que você tem aí? – num movimento com as mãos surgem dois crânios abertos.
- Beba!

...

Não liguei pro aspecto. Bebi o sangue do inferno...

...

- Viu seu zé ruela... pare de achar que está no inferno. Fica aí dramatizando. Você acha que é quem? Tá se achando o amaldiçoado? Ponha-se no seu lugar seu otário. Já estou de saco cheio de você. Dá vontade de tocar fogo e transformá-lo em cinza. Maldita burocracia!
- Calma aí capeta... qual é? – estranha a atitude do demo.
- EU NÃO SOU O CAPETAAAA!!!! – berrou o maluco, com uma voz diabólica – A PORRA DA MINHA VOZ NÃO É DIABÓLICAAAAAA – putz... agora fique sem palavras.
- Tá bom então... você não é o capeta então... o que você é... um anjinho fumador de crack?
- Escute aqui seu pentelho. Desde que você chegou estou de saco cheio. Ao invés de deixar as coisas rolarem fica aí divagando, achando que é importante. Você é um mero ser que meteu uma bala na cabeça. Então está aqui por isso.
- Como assim?
- Puta merda! – meteu as mãos no rosto e sua pele desceu como uma gelatina, deu pra ver o crânio do cara que agora não é mais o capeta – O negócio é o seguinte. Eu não sei o que vocês pensam da morte lá na terra, mas aqui ninguém pensa em nada.
- Faz sentido.
- Aqui é uma repartição. Você meteu uma bala na cabeça em vida e é designado automaticamente pra esse setor.
- Quer dizer que cada morte tem um destino. Se eu sou atropelado, vou pra um lugar específico?
- Bem... aí depende. Por exemplo: se você foi atropelado voltando a pé do trabalho por um bêbado e morre, vai pra um lugar diferente do que se estivesse bêbado a pé e fosse atropelado por um cara que estava voltando do futebol com seu filho. Sacou?
- Mas eu meti uma bala na cabeça. Estou aqui por que?
- Porque você meteu uma bala na cabeça seu ignorante.
- Mas todos os suicídios por bala na cabeça são designados pra cá?
- Sim... todos.
- Mas aí está errado. Cada um tem um motivo pra se matar. Isto está errado.
- .......... – ele só me olhava, estava derretendo de raiva.
- Calma... o que você quer negociar então?
- Olha, você tem duas opções. Se tornar um zumbi, como aquele que estava na sua casa quando você não sabia que havia se matado, ou ficar por aqui... no meu bar, na minha repartição.
- E se eu não quiser nenhuma delas...
- Olha aqui cara... já negociei com gente mais importante que você... ninguém me deu trabalho. Só você.
- Quem, por exemplo, senhor negociador.
- Olha... até o Getúlio Vargas foi mais tranquilo que você!
- Tá bom... vou fingir que acredito.
- Aff... Kurt Cobain anda pelo boteco direto.
- Como é que é?
- É isso aí...
- Como eu faço pra ficar por aqui?
- Tem que fazer uma proposta. Uma PEC.
- O que é isso?
- Odeio quando tenho que negociar com ignorantes.
- Como é que é?
- Pzzz... bom... PEC quer dizer Proposta de Emenda à Constituição. Sacou?
- Daí se eu bolar isso eu consigo ficar por aqui?
- Mais ou menos...
- Mas você disse que era isso.
- E é isso. Mas eu posso mover uma ADIN contra sua PEC.
- O que? Como é que é? ADIN! Que porra é essa?
- Ação Direta de Inconstitucionalidade.
- Puta que pariu... eu to ferrado mesmo...
- Posso te dizer que nunca perdi pra ninguém... hehehe.
- Isso aqui é uma vergonha, você está brincando comigo! É injusto!
- Olha aqui seu babaca... você meteu uma bala na cabeça, isso é a covardia em estado pleno. Ao invés de ter se revoltado com o Senado Federal do seu país que gasta 6 milhões em pagamento de horas extras não trabalhadas no mês de janeiro, não! Você preferiu se matar em março. Agora já é meio tarde pra você dar uma de politizado né!
- Eu precisava de psicólogo quando estava vivo! Agora não preciso mais. Entendeu?
- Vai te foder então.
- Quem é teu patrão?
- Olha aqui cara. Eu sou o patrão. Eu coloco o prefeito, o vereador...
- Mas você disse que era só o teu bar ou virar zumbi.
- É isso aí.
- Seu bar tem prefeito?
- Tem.
- Quem?
- O Doc.
- Quem é Doc.
- Odeio ignorantes.
- Ah... diz aí?
- Bom... o Doc é o Hunter S. Thompson.
- Hum... nunca ouvi falar.
- Mais um motivo pra você virar um zumbi.
- Quem me garante que quando eu virar um zumbi você não fará o que fez com os outros.
- O que eu fiz com os outros?
- Transformou em cinzas pra fumar crack!
- Boa idéia... mas não fumo cinzas de ignorantes como você.

...

- Posso pensar?
- Claro.

...

O que será que eu faço! Repartição pública no além? Isso só pode ser um sonho! Acho que eu não morri! – “Pode ter certeza que morreu” – ei... o que você está fazendo? – “Eu posso ler seus pensamentos, entende!” – puta merda.

...

- Como eu faço pra ver o final da exposição das fotos da alma?
- Se você ficar por aqui... ela faz parte da decoração do meu bar...
- Se eu ficar! Quer dizer que existe a possibilidade?
- Já disse... é só fazer uma PEC.
- Mas eu nem sei como fazer isso!
- Pra isso temos uma outra repartição. Eu mando você pra lá. Eles te ensinam a fazer uma PEC.
- E depois?
- Depois você precisa arrumar um advogado. E ele cobra.
- Isso não é surpresa.
- É... isso não é surpresa.
- Mas ou menos quanto tempo isso demora.
- O mesmo que em qualquer outra repartição.
- Você está querendo dizer que tem fila?
- É... como eu percebo que você chegou duro, sem grana, por aqui... sim... pra você tem uma fila... vamos dizer... uma fila do além... hahaha.
- Cara... você se acha o engraçadão né?
- Pois é... e aí... vai virar zumbi ou não?
- O que o zumbi faz?
- Ele fica feio igual aquele ser que eu torrei por aqui. Mas pode ficar andando na terra. Vendo o que acontece. Porém não sente nada. Não fala. Só vaga. É uma alma penada, vamos dizer assim.
- Mas como?
- Pra quem meteu uma bala na cabeça, isso está até que de bom tamanho.
- Tem como eu morrer novamente?
- HAHAHA... boa boa...
- To falando sério!
- Olha... vou transformar você num zumbi. É o procedimento normal.

...

Abro os olhos e estou novamente aqui. No meu país. Na minha cidade. Caminho com velocidade, desenvoltura. Passo por entre os carros, as pessoas. Posso até voar. Paro na janela de um apartamento e posso ver uma gostosa tomar banho. Mas não sinto nada! – “Eu te avisei!” – Puta merda... você sempre lê meus pensamentos? – “É só um monitoramento inicial”.

...

Já se passaram noites e dias. Estou ainda sendo monitorado? Estou sendo monitorado? Acho que meu patrão está ocupado. Vejo outros zumbis vagando também. Todos com a boca costurada, grandes olheiras, pele muito branca. Somos um exército que não tem vida. Todos meteram uma bala na cabeça. Agora vagamos por aí.

É muita gente covarde como eu! Todos deixaram suas famílias. Ontem mesmo passei por minha mãe, meu pai, meus irmãos. E eu sem sentimentos! Não consegui sentir nada.

Também vi filas nas repartições. Li sobre PEC’s e ADIN’s. Mas agora é um pouco tarde pra me informar. Pra ter sentimento.

...

Vejo pessoas como eu antes de morrer. E sei que elas vão morrer. Elas são como eu era. Não deixei de ser um zumbi. Só que antes estava vivo.

Se as atitudes são boas, ruins, péssimas ou ótimas. Não importa. Existem coisas que só fazemos em vida.

FIM