quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Professor (Capítulo II)

“Não assimilo a falta de perspectiva. Cada um pode ter sua metamorfose sem perceber que isso acontece. Basta alguma forma de incentivo. Isso deve partir – logicamente – do individuo, mas são fatores cotidianos que fazem com que isso aflore” – Professor Jurubeba.

...

Professor Jurubeba e eu estamos na venda ao lado do salão. Estou com certa ansiedade, pois – na minha cabeça – acompanho uma espécie de guru didático do mundo educacional. Este revolucionário, de certa forma, ampliou meus horizontes em relação a ser uma pessoa mais preocupada com certos parâmetros.

No bar, aquele cheiro de suor e linguiça, além de um pequeno balcão, duas mesas quadradas de madeiras, três fileiras de prateleiras com produtos diversificados – sabonete, bolachas, material de limpeza, etc – e quase emendado com o balcão, um freezer improvisado que, imagino eu, serve de açougue.

Olho pras paredes e vejo fotos de anônimos (pelo menos pra mim) pendurados, com molduras verde musgo (a cor interna do bar lembra um verde escuro puxado quase pra um preto). Esta aparência pesada me fez sentir um desconforto. Já havia sentido na primeira vez que entrei no estabelecimento, mas desta fez havia um clima ainda mais pesado no ar.

Meu entrevistado mantinha um ar sereno, havia colocado uns óculos escuros num ambiente escuro. Não me senti com liberdade pra questionar, apenas esperava o convite pra sentar e mandar ver algumas perguntas.

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O convite veio, então sento.

- Linguiça! Capricha duas doses do néctar pra nós! – Linguiça é o apelido do cara que fica atrás do balcão, não sei se é dono do bar, não tem cara... mas...

Quando vi o que era pra beber fiquei com receio. Dois copos de pinga com um líquido, saia fumaça pra caralho.

- Aí garoto... espere esfriar um pouco.
- O que é isso?
- Já conversamos sobre o que iremos beber. Primeiro quero saber mais sobre o seu trabalho!
- Ah... sou mais um jornalista, entre milhares que existem por aí...
- Não um simples jornalista, não é? Pois veio até aqui! Mas me diga... qual a sua preferência jornalística? Qual área prefere?
- Como assim? Não quero falar de mim. Jornalista não gosta de falar sobre seu umbigo. Então vamos ao trabalho Professor, direto ao assunto. Ok? Eu vim aqui pra saber mais sobre o seu trabalho... não vim aqui pra ser entrevistado... se é que você me entende?
- Claro claro... eu sei... você quer falar sobre educação... sobre a nova cartilha do MEC, que foi esquecida pela mídia... além do próprio tema EDUCAÇÃO – fez com a mão um gesto entre aspas.
- Exatamente.
- Pois é jovem... mas vamos analisar... se o tema educação está tão esquecido, por que você quer falar dele? Tenho algo melhor para falar...
- Mas a questão é essa... quero lembrar as pessoas sobre esse tema...
- Veja bem... não é por aí que as pessoas vão lembrar... tenho como fazer as pessoas lembrarem... mas de uma forma mais... vamos dizer assim... revolucionária!

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“Alguns formatos didáticos ditam os passos. Tornou-se hábito, por exemplo, criar a qualquer custo um atalho. É a cultura pela busca do percurso menor. Essa ordem, na verdade, é algo propositalmente oculto. Por isso não se sabe de onde vem o que se segue” – Professor Jurubeba.

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- Como assim?
- Vamos dizer que tenho um formato didático que não é tão didático assim. É algo que implanto de forma secreta, mas quem sabe não chegou a hora de divulgar? Pode ser também que você seja a pessoa certa para isso...
- Me explique melhor esse negócio!
- Calma jovem... sei que você é curioso... aliás... percebi isso da primeira vez que conversamos, mas vamos com calma. Primeiro... como você pode perceber – apontou pros dois copos – nossa bebida já não está tão quente assim, está no ponto para tomarmos!
- Mas o que é isso afinal?
- Esse é o meu Chá. A bebida que transformará o mundo! O néctar que transcenderá as barreiras educacionais, culturais... enfim... transcenderá todas as barreiras!

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Isso que está em minha frente é algo grotesco, parece suco daquelas lesmas verdes, um pouco denso, gosmento... não consigo definir o que é isso...

Olho pra cara do Professor Jurubeba e não vejo a pessoa que imaginava. Estou num território estranho, num lugar que não sei direito onde fica. Com uma pessoa diferente do que imaginava. Se fosse guerra, estava desarmado em território inimigo.

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- Esse seu néctar é o chá de jurubeba?
- É sim meu nobre jovem! Bem denso e concentrado, preparado pelo meu amigo Linguiça, o mestre na preparação desse chá.
- Entendo!

Professor Jurubeba então tomou no gargalo seu chá.

- Agora beba você também!
- Não! Obrigado! Não se importa da desfeita, não é?
- Como assim?
- Algum problema nisso?
- Pra mim? Não. Agora pra você, pode até ser...
- Não entendi?
- Eu sei que você acha estranho tudo isso, mas vou te explicar uma coisa. Pra você fazer parte do Casulo Metamórfico é preciso essa experiência.
- Casulo Metamórfico? Que porra é essa?
- Ah... – olhou pro Linguiça com cara de fanfarrão – acabei falando o que não devia! Agora você já sabe sobre o Casulo... nosso segredo! Bom... acredito que sua situação agora é irreversível...
- Hã... está tentando me assustar Professor?
- Não não...
- Então qual é?
- O fato de você me procurar não foi por acaso não é?
- Eu te procurei por causa do que escreve... por causa dos seus livros sobre educação... dos dizeres ligados ao tema que quero escrever... só isso...
- Esses livros educacionais foram escritos faz algum tempo... não me preocupo com eles... afinal... como você disse... a educação está muito desvalorizada. Você sabe o que eu passei para chegar até aqui?
- Não... mas podemos escrever sobre isso também!
- Esqueça isso... acho melhor você beber logo nosso néctar...
- Não vou beber... quer saber mais... vou embora...

Levantei, mas Linguiça surgiu com um facão de açougueiro. Além dele, parado na porta estava o cabeleireiro. Duas figuras ímpares...

- O que é isso Professor?
- Fechem o bar meus amigos jurubebianos...

Então a porta de ferro foi baixada e percebi que estava na merda.

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O açougueiro puxou um gancho em que estavam penduradas algumas linguiças. Um barulho estranho, como um estalo, fez com que uma porta se abrisse num canto do bar. Parecia cena de filme. “Uma porta secreta!”. Professor Jurubeba deu um sorriso. O cabeleireiro foi até a porta e desceu umas escadas... sumiu na escuridão.

Então Professor Jurubeba explicou que seus amigos eram membros da seita dos Jurubebianos e que o Casulo Metamórfico é sua atual didática educacional.

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- Olhe... vou explicar mais uma vez... isso aqui nada mais é do que o futuro... nós não estamos preocupados com o mundo lá fora. Após entrarmos no Casulo as coisas acontecem!

Linguiça encostou o facão no meu pescoço, o Professor simplesmente disse:

- Beba.

Virei aquele treco... não senti gosto algum... desceu algo grosso e gosmento. “O que será que isso vai dar?” – pensei comigo.

- Jovem... veja bem... aqui nós queremos que pessoas curiosas vejam como é a verdadeira forma de se entender a vida. Nada é tão fácil... precisamos de um incentivo para aflorar as coisas... tudo é questão de incentivo. Esse empurrão vai demorar apenas uns vinte ou trinte minutos para acontecer...
- Mas Professor! Só quero falar de educação... só quero que as coisas sejam esclarecidas... eu posso ajudar a divulgar suas ideias cara! Vamos lá... fale o que quer que as pessoas saibam!
- Você ainda não entendeu! Aqui nós é que escolhemos... e você é o escolhido!
- Eu sou o escolhido pra quê?
- Pra entrar no Casulo Metamórfico! Sabemos sobre você... sabemos do seu blog... sabemos que você quer expandir as pessoas através de alguns folclores sem sentido, mas que para nós... faz!
- Como é que é? Vocês me investigaram?
- Depois de hoje, passará o portal. Você já segue uma vida não linear... só precisa de um empurrãozinho a mais...
- Mas eu não quero me tornar um de vocês...

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O silêncio durou alguns minutos. Professor olhava pra mim. Aguardava. Olhava as horas. Linguiça aguardava ordens. Eu não sabia o que estava por vir.

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- Vamos descer... temos que iniciar nosso ritual... não temos todo tempo do mundo – disse o Professor.
- Eu não vou a lugar algum!
- Daqui a pouco meu jovem... realmente você não vai mesmo!

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Mais uma vez um facão no meu pescoço. Tive dificuldade em levantar da cadeira e meu peso cada vez aumentava. Fui em direção às escadas. No meu corpo, algo percorria minhas veias... não estava normal. Minha respiração mais ofegante e meu corpo mais pesado. As coisas pareciam mais lentas.

- Você vai sentir uma sensação diferente... seu corpo não está acostumado com isso...

Ouvi a voz do Professor mais lenta... o escuro das escadas tomavam formas. Minhas pernas estavam mais fracas. Quando fui dar um passo na sequência do outro percebi que cairia!

- Segure ele Linguiça – ouvi a voz do Professor como se estivesse longe!

Senti um fedor ainda mais forte do açougueiro! Aquilo me embrulhou o estômago. Então não tinha mais forças pra descer as escadas e estava sendo carregado por um saco de lixo fedorento... não aguentei...

Vomitei pela escada toda... não tinha forças pra fazer mais nada... apenas sentia meu corpo colocar pra fora o que tinha dentro. Uma sensação horrível... estava impotente e ao mesmo tempo consciente. Minha visão um pouco embaçada, mas ao mesmo tempo havia alguns segundos de lucidez!

Alguns espectros e raios de luz passavam por mim... então percebi que estava numa espécie de porão com luz neon...

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“Se você expande sua perspectiva, se estrutura. Pode até ser ignorado, mas sabe que pode ultrapassar este limite. Dentro de uma cápsula encontram-se muitos olhos. Dessa forma passa a enxergar algumas direções que antes só estavam a dormir” – Professor Jurubeba.

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No porão um caixão preto, sem tranca... sem tampa, no chão. Crânios pendurados nas paredes. Seus olhos esverdeados. As paredes lançam, como se fossem cachoeiras, uma água condensada – lembra o ‘néctar’ que bebi. Há cálices, facas e machados nas paredes. Livros abertos.

Estou numa cadeira ao lado do caixão. Professor Jurubeba está numa cadeira de rodas, pois, assim como eu, não deve estar sentindo suas pernas. A agonia toma conta de mim. Parece que quero alcançar algo, mas não tenho forças pra chegar até lá.

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Linguiça está parado de braços cruzados. O cabeleireiro – com sua roupa fashion e tatuagens – está atrás do Professor. Ele segura a cadeira de rodas que é a locomoção do seu guru.

- Ei jovem... consegue me ver? Estou bem aqui! – mexe os braços como se fosse um boneco de posto... mas com dezenas de braços!
- O que é isso? Não consigo me mexer! Por que está fazendo isso comigo?
- Esse chá realmente é do bom... vocês viram o jeito que ele falou? – disse o Professor, provavelmente tirando sarro da minha dicção dificultada pelo chá. Ele continuou:
- Bom... não estamos aqui para perder tempo... iremos abrir sua mente e você entenderá o que é nosso Casulo Metamórfico! É algo bem simples... você não vai sentir nada...

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Professor Jurubeba faz um sinal para Linguiça que vai até a parede e pega um machado de lenhador que está pendurado. Entrega ao Professor.

Vejo de forma gelatinosa um ser numa cadeira de rodas, ele segura um machado no seu ombro, o cabo parece de borracha mole. O Professor está com seus óculos escuros, sua barba bem feita, um chapéu e sua roupa bem alinhada. Chega perto de mim... Linguiça também, de braços cruzados... como um carrasco.

Vejo a lâmina do machado vindo em minha direção, Professor a coloca com dificuldade na minha testa e diz:

- É bem aqui... é bem aqui que está o terceiro olho do nosso jovem amigo...

Então ele faz uma força para marcar. Não sinto dor. Depois de alguns segundos percebo um líquido descer em minha face.

- Agora é hora de transcender! – diz em voz alta Professor Jurubeba.

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Os outros dois me pegam embaixo dos braços e deitam-me no caixão. Não tenho forças pra reagir. Não tenho força pra nada. Apenas olho pro teto e num piscar de olhos a face do Professor Jurubeba entra no meu campo de visão. Ele sorri, com o machado no ombro.

- Então meus amigos! Estamos aqui para cumprir nossa função de levar mais um jurubebiano para o Casulo! Essa celebração de passagem marca mais um visionário que irá intervir por nós lá no grande e eterno Casulo Metamórfico. Esse que vai... passará para a eternidade... ele terá o poder de intervir por algo maior... e que nossa função seja executada com sucesso!

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A lâmina do machado está novamente em minha testa. Linguiça e o cabeleireiro ajudam Professor Jurubeba a levantar o machado – eles são a precisão do golpe. Acompanho a lâmina cair em minha direção, ela vem reluzente... e como um raio de luz cortante, abre minha cabeça...

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“As pessoas mais educadas tendem a ingressar num ritual de exclusão dessa sociedade que não permite aprofundarmos uns nos outros. Se justamente não é pra sermos compreendidos e propositalmente amarrados a generalidade, então que abramos uma nova porta para que os pensamentos se devaneiem em direção ao infinito” – Professor Jurubeba.