sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Mijadas territoriais



Deitado numa maca no Hospital Cajuru, olho pra minha perna: “porra... filha da puta de um vira lata”. São seis horas da manhã, acabei de dar entrada na papelada e me deixaram deitado aqui. O médico deu uma olhada, disse que normalmente não precisa dar ponto, mas como abriu uma boceta na minha panturrilha, vai precisar de um remendo.

Aqui olho pro teto branco do hospital, minha perna esticada. Tento lembrar alguma coisa. Só penso naquela cara do cachorro louco que me deparei na madrugada.

...

22:30 – noite anterior

Estávamos num condomínio na Vila Hauer, eu, o Castilho, o meu Xará e sua esposa Jê, além da vizinhança. Entre os vizinhos alguns tinham belos cachorros. Conversávamos sobre isso – como cuidar de um cachorro, como tratar, que raça é traiçoeira, etc e tal.

...

00:30 – a noite apenas começa

Nós quatro decidimos sair. Rodamos pra caralho, nossa intenção era o Sheridan´s, um pub irlandês na Avenida Batel. Olhamos o lugar e não estava como o esperado. Sentamos ao lado, num bar mexicano.

Papo rendeu. Ficamos horas. Mas a conversa começou a pender pra algo mais alternativo, rock n roll nervoso. Era o que queríamos.

...

03:30 – a madruga

Saímos do bar mexicano por volta das três ou três e meia da manhã, já era domingão. Bom... pra ver banda, como queríamos, já era meio tarde. Porém vamos atrás de algo alternativo pro pessoal. Fomos em direção ao bairro São Francisco, lógico.

Não procuramos muito. Entramos na Manoel Ribas e passamos em frente ao VU – nada com nossa identidade, mas naquela na hora... rolou. Porém a noite de sábado pra domingo por lá é diferente – só assim pra saber.

Quando passamos havia bastante gente em frente. “É aqui mesmo!” – decidimos. Logo que descemos as escadas nos deparamos com duas mulheres que se beijavam. Ficamos empolgados. Após isso, a Jê – mulher do Xará – voltou do banheiro dando risada e dizendo que havia sido assediada por outra mulher.

O Xará pra não perder a piada soltou: “por que não chama ela?” – “posso chamar um amigo também?” – essa foi à resposta instantânea. Aí eu e o Castilho não perdemos a piada também. “Agora eu vi o leão virar gatinho!”, dissemos dando risada.

A música estava legal, chegamos ao som do Kiss, depois rolou Rolling Stones e outros clássicos. Pouco tempo depois as mulheres haviam sumido! Restaram homens? Os olhares nos indicavam: “o que esses héteros estão fazendo aqui?”. Caímos fora.

...

04:00 – Largo da Ordem

Chegamos num boteco no Largo pra fechar o papo. Também fechamos o bar. A Jê dormia na cadeira, paramos de beber e levamos o casal embora. Na volta tive a brilhante ideia de voltar pra outro boteco, pois seis e meia da manhã chegaria por aqui o JC – exclusivamente pra ver o jogo Atlético e Flamengo.

...

06:00 – hora do Cachorro do Louco

Estacionamos no Largo, perto da Dr. Muricy. Subimos a rua, passamos a praça e olhamos pra ver se tinha algum bar. Já estavam todos fechados. Foda! Voltamos pro carro. O Castilho foi mijar. Na volta eu fui. Na esquina da Travessa Nestor de Castro com a Rua do Rosário. Passei por um carrinho de catador de papel, desci uns cinco metros adiante, mijei. Na volta, na curva da esquina, senti um baque na minha panturrilha. Fez uma confusão na minha mente, escutava latidos, mas pareciam longe, foi questão de segundos! Com o reflexo ainda lento dei um salto pra me distanciar. Olhei pra baixo, um vira lata branco e preto – eu acho – me mordeu e veio pra cima mais duas vezes.

Saí de perto. O Castilho perguntou: “Pegou?” (a mordida) – “Pegou!” – “Machucou?” – “Vou entrar no carro pra ver!” – entrei no carro. Ao arregaçar a calça! “Puta merda! Vamos pro hospital” – disse meu camarada. “Vamos! Que merda!”. “Está doendo?” – “Está” – “Mas então diz que está doendo porra! Você está com essa cara de quem não está sentindo nada! Quando dói você precisa fazer... aaaaaaaaiiiiiii... arrrrrrrrrggg... essas coisas cara!” – me explicava meu jovem mosqueteiro, sobre a minha reação fria.

...

06:30 – a ligação

- JC? E aí? Sou eu. Está na rodoviária já?
- Estou.
- Fica na avenida do tubo que um amigo meu vai passar aí pra te buscar. Estou aqui perto da rodoviária, no Hospital Cajuru. Bota fé que levei uma mordida de cachorro?
- Como é que é? Tá me zoando né?
- Não cara, mas daqui a pouco te explico.

...

07:00 – olha o sol!

O dia já havia clareado, o JC chegou na hora que o médico dava o ponto na minha perna.

...

07:30 – outra aventura

Bom... após o ponto feito, o sono perdido, a bebedeira perdida. Sem ressaca. Um puta sol e nós atrás de posto de saúde pra tomar à primeira anti rábica.

Dizem que Curitiba é cidade modelo em vários setores, mas já adianto, na área da saúde pode excluir. Chegamos num PS no centro da cidade, próximo a Praça Rui Barbosa, num domingo, e nada de vacina. Aliás, você está num hospital, como nós estávamos, e te mandam pra puta que o pariu tomar vacina? Por que não tem a vacina no hospital? Depois não querem que eu tenha raiva?

Ótimo, nos passaram o PS do Boqueirão. É longe! Nossa sorte foi que o Tim Maia animou a “viagem”.

...

11:00 – Alguns minutos de espera e um pico no braço

Andamos por vários lugares em Curitiba até nos indicarem o PS do Boqueirão. Finalmente encontramos. Longe pra caralho. Acho que se contarmos idas e vindas e voltas e etc e tal, percorremos uns 30 km nessa brincadeira.

No PS me deparo com a fila. As pessoas com cara de poucos amigos e uma atendente quase enlouquecida. “A mulher que era pra vir folgou logo no domingo e sobrou tudo pra mim!” – dizia ela. “Complicado” – respondi. “Dizem que o Beto Richa é um prefeito modelo, olhe ao redor! Você acha que esse é um PS modelo?” – pois é... não pude discordar, também não era o momento de conversar sobre política. “Vamos lá... só quero minha vacina e dar o fora daqui!” – disse pra mulher.

Após um tempo, depois de preencher ‘aquele’ formulário, fui até uma sala e tomei a primeira das cinco que estão programadas. Em frente ao PS estavam meus amigos, com uma cerveja na mesa e cara de impacientes. A diferença é que eles não estavam com um ponto na perna e um pico no braço.

Sentei podre e puto. Tomávamos mais umas geladas quando surge um cachorro – do dono do bar – e vem pro nosso lado. “Aí cara, to falando sério, toca esse cachorro daqui senão vou picar o bicudo nesse filho da puta” – e o Castilho foi fazer o que eu disse, mas o cachorro avançou nele! Não mordeu – pelo menos estávamos em frente ao PS.

O cachorro saiu em direção ao dono. Eu levantei. Mesmo manco, fui até o dono do bar e disse: “é melhor o senhor tirar esse cachorro daqui. Já levei uma mordida hoje, não que seu cachorro vá me morder, mas é melhor tirar!” – ele tirou. Percebeu que o recado foi pro cachorro. Naquela altura era mais fácil eu morder aquele peludo desgraçado.

...

Já havíamos combinado de nos encontrar na feira do Largo da Ordem com a galera, prá lá fomos. Sentamos numa praça. Comemos alguma coisa e trocamos ideia. Lugar legal, pessoas amigas e a expectativa de ir à Baixada ver o Atlético ganhar do Flamengo. Até porque aqui em Curitiba o “menguinho” é freguês faz anos.

Tudo nos conformes. Fomos pra casa antes. Nesse momento estávamos eu, o JC e o Alemão (que divide o apartamento comigo e com mais um). O curativo na perna era um problema, ainda não tinha decidido se caminharíamos até o ponto de ônibus ou pegaríamos um taxi. O Castilho havia voltado pra Santa Catarina.

Caminhei um pouco e vi que era melhor pegar um taxi. JC concordou e fomos pro estádio.

...

O jogo foi foda! A lógica: 1 a 0. Mais uma vitória do furacão e foda-se o Flamengo.

...

18:30 – Após o jogo, após o taxista, após tudo... ainda tinha mais!

Bom... pegamos outro taxi. Conversa vai conversa vem falei que havia tomado uma dentada de um vira lata na madrugada. Ele perguntou: “Já tomou sua vacina? Sabe que agosto é o mês do cachorro louco né?” – porra! Na verdade eu não sabia, depois liguei os fatos. “Aé! Bom... tomei a primeira vacina, tem mais quatro!” – e o papo rolou.
O mês do cachorro louco. É mole? Tudo bem, já tomei a vacina. Vou pra casa que é a melhor coisa que faço.

Após tudo e ainda precisar subir as escadas com a panturrilha fodida chego ao apartamento onde moro. Nada mais podia acontecer? Errado! Abri a porta e vi o Alemão chamar algo! Sei lá o nome, não lembro! Nem cheguei a entrar completamente pela porta e me aparece uma vira lata – não vou dizer grande! Mas também não era pequena, era uma cadela, tamanho médio... sei lá... era grandinha vamos assim dizer – e o cara que mora comigo todo alegre.

“Olha cara... adotei hoje, tinha um lugar aqui perto de casa pra adotar cachorro” – olhei pro JC. Não sei descrever a minha cara, talvez ele, mas sei descrever a dele. O meu camarada ficou pasmo, isso que ele não mora conosco. Eu não acreditava no que via. Sinceramente não imaginava que isso iria acontecer. Aliás, não tem como imaginar esse tipo de estupidez.

A minha vontade era de atacar alguém. “Será que isso tudo é um teste pra mim?” – pensava comigo. “O que está acontecendo? Que porra é essa?”. Bem... sentei no sofá e logo a cadela veio me cheirar, porra... eu gosto de cachorros e tudo mais, porém nesse dia... como iria gostar?

...

Fiz o cara que mora comigo devolver a cadela. Ele teve que ligar pra quem ele adotou e mandar vir buscar. Sinceramente, não teria condições de pegar um vira lata grandinho e botar pra dentro do apartamento. Porra... achei uma desconsideração não ser questionado se estava de acordo, mas o pior é pensar que isso realmente aconteceu. Isso não é estória! Uma pessoa realmente fez isso!

Bom... o vira lata foi devolvido. “Cara... você achou que fui cuzão com o Alemão?” – perguntei pro JC. “Não! Na verdade achei que você foi diplomático até demais!”. Ótimo, JC vai direto ao assunto. Era o que precisava saber.

Liguei pro Castilho e disse o que ainda me havia acontecido. “Joga no bicho!” – ele foi enfático. Como estava manco, sugeri dias depois meu pai jogar. Então liguei pra ele e ele jogou: 150 reais na cabeça.

...

Hoje

Sinceramente, passaram dias e esse tempo em aberto me fez pensar muitas coisas. O Castilho disse na semana seguinte: “Eu errei!” – “Ué... por que?” – “O cachorro rosnou pra mim, devia ter te avisado” – “Nada a ver” – “É sério” – “Não... a distração também foi minha”. Claro! Isso poderia ter mudado alguma coisa, mas tudo bem.

Então a filosofia é barata, mas também é real. O cão é realmente o melhor amigo do homem. O cachorro foi de guarda mesmo. Cuidou a casa do seu dono.

São os territórios! Isso é certo. Seja nos bares, nas ruas, nos hospitais, em qualquer lugar. Os territórios estão demarcados. Alguns por mijadas, outros não vemos. O fato é que as marcas territoriais muitas vezes são sentidas na pele, mas essa é uma reação sincera, não temos dúvida.

...

Que noite! Que dia! Falta pouco tempo pra eu tomar a quinta vacina, termino essa história e parto pra outra. Já vacinado.