quinta-feira, 18 de março de 2010

Arquivos que se vão

CAPÍTULO I

Entro no bar que tanto frequento, mas dessa vez vejo meu nobre amigo Leopoldo sozinho no balcão. Não me surpreendo com sua presença ali, o que me deixou preocupado foi a quantidade de cachaça que ele havia tomado. Contei uns seis copinhos de pinga, além da cerveja. “Bom... o bicho deve estar pegando” – pensei comigo.

“E aí grande Leopoldo, tudo certo?” – cheguei dando um tapinha nas suas costas. Ele me olhou com um zoinho de quem tinha fumado uns trinta baseados, não disse nada, só ergueu o copo e brindou com o além. Sentei ao seu lado e pedi uma dose de pinga. Afinal, somos amigos e precisamos compartilhar alguma coisa.

Ele me olhou profundamente e disse: “cara... eu to fodido, você não tem noção!” – achei que Leopoldo estivesse pior, mas dava pra entender perfeitamente suas palavras. “Você tomou tudo isso sozinho?” – “Claro porra!” – tudo normal até agora.

...

Conheço Leopoldo desde a época em que trabalhávamos num hotel no litoral de Santa Catarina. Ele sempre foi uma tranqueira: com várias mulheres se casou, batia numa delas, depois voltava, já estava com oito filhos, tinha terrenos que vendia e comprava outros. Fazia tudo quanto era bico pra comprar presentes pras esposas e amantes. Amava os filhos mais que a ele mesmo, já havia criado sete e a mais nova, uma adolescente, ele dizia que daria trabalho. Era um vivente daqueles!

Certa vez me disse que havia chorado toda manhã, eu perguntei o motivo daquele drama! Disse que enfrentava uma depressão. Não sabia o motivo pelo qual chorava, tudo era motivo. Olhava pro seu quintal e chorava. Pensava nas suas mulheres e chorava. Pensava nos seus filhos e chorava. Pensava no seu trabalho e chorava. Então olhei pra ele: ele chorava!

Uma companheira nossa de trabalho passou um fitoterápico pra ele, tinha essência de maracujá. Ela disse: “tome! Vai te acalmar. Esse remédio me acalma. Também tenho depressão, já tentei me matar várias vezes, parece que agora estou com vontade de viver e esse remédio me ajuda”. Leopoldo nos olhou e pediu pra ver a caixinha. Pegou uns cinco comprimidos e mandou pra dentro. Ela disse: “vixi, vai dormir visse! Daqui a pouco vai esquecer tudo e apagar!”.

Leopoldo era assim. Quando precisava resolver um problema ia fundo no negócio. Uma vez queria comer um pouco antes do horário da refeição, no nosso trabalho. O chefe de cozinha não quis servir, ele puxou uma faca e o bicho ia pegar. A sorte do cozinheiro foi que todo mundo se desesperou e não deixou a merda acontecer. Ele tinha sangue no olho mesmo.

Certa vez chegou puto no trampo, disse que sentou o braço na sua mulher, desceu a lenha mesmo e estava com medo que o polícia chegasse pra buscá-lo.

...

Nosso dia a dia era mais ou menos por aí.

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“To fodido, to fodido” – dizia Leopoldo. “Mas por que?”. Ele só balançava a cabeça e passava a mão no bigode. Mandou mais uma talagada de pinga. Eu também me embalei na cachaça. Imaginava o que esse cidadão tinha aprontado. Ele me olhou e fez que diria algo, mas aí fez sinal de negativo e mandou mais uma talagada de pinga. Eu mandei outra também.

“Sabe aquele putinha lá que eu comia, que me ligava e coisa tal!” – “Sei sei... a Letícia né, o que tem ela?” – “Um dia desse eu queria fazer um esquema com ela, porque minha mulher foi viajar, então já viu né. Pois então... ela não podia, fiquei puto da cara, mas fazer o que né. Daí aquela vadia... ah... maldita hora que eu fui aceitar a proposta daquele miserável!” – “O que houve cara?” – “Porra... fui na conversa de puta cara... logo eu... logo eu...” – “Que conversa meu?”.

Ele já estava todo sentimental, são as fases da bebedeira. Pelo menos botava pra fora aquele monte de merda que costumava guardar. “Aquela puta disse pra mim que não podia... aí disse que tinha uma amiga... falou que era uma menininha coisa mais lindinha... que eu ia adorar” – “Olha só! Que arrego!” – “Arrego? Tais doido nego? Você não sabe o que pegou!” – “O que? Vai dizer que deu pra trás?” – “Não não... claro que não... tive que ir né... fui lá ver qual era dá menininha” – e me olhou com brilho nos olhos.

Quando vi aquela cara, pensei com meus botões: “ou ele matou a menininha ou ela era muito boa pra ele que tomou um chá de boceta”. Ele simplesmente começou a chorar... com a cabeça no balcão Leopoldo via a desgraça rondando sua vida. “Calma cara... bebe bebe...” – aí ele mandou mais uma pinga pra dentro.

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“Ela é boa demais! Boa demais visse! Sabe aquelas menininhas magrinhas, toda durinha, não tem? Era desse jeito!” – “Mas ta reclamando do que então porra?” – “O problema foi que quando cheguei lá na casa da outra, entrei e dei de cara com essa menininha. Ela levou um susto quando me viu e eu quase caí duro quando vi ela” – “Sério... quem era?” – “Amiga da minha filha porra. Você tem noção do que é isso?” – “Caralho mano, que situação ein! Mas e aí, pelo jeito você comeu igual né?” – “Cara, a menina disse que era o primeiro programa dela, que fez porque a outra lá disse que seria com um cara legal e coisa e tal... pensei em ir embora, mas ela estava afim também... não podia não estar... com uma roupinha daquela e tudo mais. Nossa senhora!”.

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Pensei no motivo pelo qual Leopoldo estava fodido, como ele mesmo havia dito. Será que ele descobriu algo sobre sua filha, pois se a amiga da filha é puta, ele associou e chegou até sua filha. Vai que pegou ela fazendo uma suruba ou coisa parecida. Estava a fim de perguntar algo nesse sentido, mas achei melhor o deixarele continuar sua história, fiquei só pensando na filha dele por um tempo, mas logo passou.

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“Meu amigo, foi tudo de bom!” – “Olha só... qual o problema então?” – “Agora vem outro detalhe! Essa menina é louca!” – “Como assim?” – “Agora ela me liga e diz que não é puta, que eu fiz isso com ela! Que eu transformei ela numa puta e que vai falar pra minha filha e pra minha mulher. Ela disse que vai acabar com minha família cara!” – “Puta merda! E você... disse o que pra ela?” – “Não sei o que dizer... ela me liga toda hora, minha mulher está desconfiada!”.

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É uma situação diferente essa do Leopoldo. Ele é um cara que sempre teve várias mulheres, mas elas sempre o fizeram de gato e sapato. Teve uma vez que ele pegou uma de suas ex-mulheres com um amante dentro do carro. O cara virou o bicho e desceu o pau no carro do amante. Quebrou tudo e ainda levou os dois pra polícia. Leopoldo achava que traição ainda era crime!

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Porém... no auge da nossa loucura, começamos a pensar em formas de resolver esse problemão. Se a putinha ficava incomodando, sugeri que Leopoldo continuasse comendo ela, mas ele não quis: “não posso, não posso... isso não... isso não!”. Bom... tinha que respeitar, até porque era ele que passava pela situação.

Outra coisa... se a mulher e filha soubessem, o que aconteceria: “vão me matar... ou mandar me matar. O meu sogro é o maior bandido da cidade porra!”. Esse problema aumentava conforme as possibilidades.

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Aquele dia foi um porre. Bebemos muito. Eu cheguei travado em casa, Leopoldo já estava travado, então não sei como ele chegou ou se chegou.

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Depois de alguns dias ele veio me dizer o seguinte: “aquela putinha gostou mesmo de mim... to ensinando tudo pra ela!” – “Como é que é? Ela queria ferrar com a sua vida e agora você está dizendo que ela gosta de você?” – “Eu sei que ela gosta. Leva jeito pra coisa. Eu falo pra ela que vou deixar ela rica desse jeito. Ela é linda. Pra mim ela não cobra mais nada, mas arrumo uns clientes bons pra ela. Vai ser gostosa assim na puta que a pariu!” – “Porra Leopoldo! O que você está falando véio! Que loucura é essa? Antes ela te ligava e dizia que iria destruir sua família e ferrar com tudo. Agora você está aí com essa cara de apaixonado, todo babão. Qual é véio... assim a casa vai cair pra você de qualquer jeito!” – “Ah... mas você não entende mesmo... eu sou um cara mais velho, não tenho a oportunidade de comer uma menininha assim todos os dias. Tenho que aproveitar esse momento, até porque estou dando uma de professor!” – e dava risada.

“Mas de qualquer forma tome cuidado! Não é só você que sabe arrumar clientes!” – ele fez sinal de positivo com a cabeça.

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Bom, estava preocupado. Esses tempos ouvi uma história de um cara que saiu com uma putinha toda lindinha por aí. Ele era como Leopoldo.
Ficou todo apaixonado e na noite que levou a menina pra casa, dormiu uns três dias com um boa noite cinderela na mente. Quase morreu, perdeu carro, documento, cartões e tudo mais...

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Então o que era questão de tempo realmente aconteceu. Entrei no boteco que sempre íamos, lá estava Leopoldo, dessa vez com a cara toda roxa e machucada, tomava sua pinga com mais cuidado, pois ardiam os lábios em carne viva.

“Você está um lixo! Nunca imaginei encontrá-lo nesse estado um dia!” – ele me olhou, parecia que seus dias de felicidade matrimonial haviam terminado de vez. “Minha mulher e minha filha sabem de tudo!” – “Então quer dizer que tomou um pau do seu sogro?” – “É isso aí” – “Saiu barato ein!” – “Por isso estou bebendo! Porque consegui acordar. Dessa vez achava que nunca mais iria acordar” – abaixou a cabeça, estava abalado.

“Mas isso não vai ficar assim. Vou me vingar daquela safada!” – “Como assim?” – “Ela vai pagar. Hoje mesmo fui falar umas verdades pra ela, mas ela estava com um cara que me botou pra correr. Deixei o meu recado. Todo mundo vai saber quem ela é. Mas vão saber depois que aquela vadia estiver morta” – “Do que você está falando! Não está mesmo com vontade de matar a puta né?” – “Isso não é mais vontade, é um objetivo... uma queima de arquivo!”.

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Fui pra casa totalmente desolado. Se Leopoldo fizesse a merda toda, perderia um amigo. Aquela puta é uma vadia mesmo. Meu amigo ensinou muita malandragem pra ela, parece que aprendeu rápido. Ouvi dizer que ela está com vários clientes da alta. Tira uma grana violenta, pegou jeito pela coisa.

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Nada como um dia após o outro. Passava no bar e não via mais meu amigo. Por onde será que ele anda. Fiquei em dúvida se ele havia mesmo mandado aquela menina pro inferno. Só havia uma forma de saber. Se eu a visse, saberia que não está morta. Então fui ao bar em que Leopoldo disse que as putas trabalhavam. Não era bem uma zona, era algo mais disfarçado, porém uma espelunca da mesma forma.

Não sabia a fisionomia da menina, apenas por descrição do meu amigo. Então era melhor conversar com a Letícia, velha amiga da rapaziada. Quando cheguei vi ela sentada num sofá. Logo sentei e puxei assunto. “E aí... como está?” – “Oi gato... quanto tempo que não te vejo!” – “Pois é né... a última vez foi na casa do Leopoldo né?” – “Foi sim... mas e aí... to com a garganta seca sabia!” – então pra eu conseguir algo da boca dessa mulher teria que pagar uma bebida.

Ela tomou um drink lá. “E o Leopoldo, fiquei de me encontrar com ele aqui e nada do cara! Não disse nada pra você?” – fez sinal de negativo. “Que estranho, será que não saiu com alguém antes de chegar aqui?” – “Acho que não. A menina dele está bem ali com aquele gato lá!” – e apontou. Então vi quem era a puta que meu amigo tanto dizia. Uma mulher nova, morena, olhos verdes, cabelos escuros e com uma fisionomia de quem não se pode confiar. “Ei! Aquela menina ao lado não é a filha do Leopoldo?” – Letícia fez sinal de positivo.

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Fui embora sem completar o serviço. Letícia ficou irritada comigo, mas fazer o que, meu objetivo não era trepar com ela. Estava tudo estranho pra mim, Leopoldo havia sumido, a menina dele estava no bar, até a filha do meu amigo estava junto! O que aconteceu?

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Após alguns dias o corpo do meu amigo estava dentro de uma embarcação abandonada no canto de uma vila de pescadores em Porto Belo. Assassinado a facadas. Sem vestígios, sem testemunhas. Simplesmente seu corpo todo fodido, como ele mesmo dizia que estava.

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Sua mulher me ligou pra avisar! Como ela tinha meu telefone! Pensei pouco sobre isso, a situação falava mais alto do que esse detalhe.

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Cheguei ao velório. Lá estavam às pessoas a chorar por um homem que era a marca de uma cidade. Que morreu sem explicação. Letícia fez um sinal pra mim, pra sair de canto. Saí discretamente e ela me puxou pelo braço com um olhar de zangada. “O que você está fazendo aqui seu idiota?” – “A mulher do Leopoldo me chamou!” – “Escute aqui, não posso te dizer muita coisa, mas vai embora que é a melhor coisa que você faz!” – e saiu.

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Já estava escuro, fiquei a observar as pessoas... agora no enterro. Fui antes de todos no cemitério, fiquei escondido. Então no final, quando todos iam embora, observei Letícia sair. Ela estava visivelmente triste. Ao seu lado a putinha e junto a elas a filha de Leopoldo e a mulher. Elas entraram em um Vectra e saíram. Lembrei de ver aquele carro quando fui ver Letícia naquele bar.

Intrigado fui lá pro bar. Isso serviu pra entender o que Letícia queria me alertar. Deixei meu carro uma quadra antes do local, caminhei pelas ruas escuras e fiquei num canto que me dava visibilidade da parte interna daquela espelunca.

A mulher de Leopoldo, a filha e a putinha dançavam e comemoravam o dia do morto. Abraçavam um jovem rapaz, bem vestido e provavelmente dono do Vectra. Encostada no bar apenas Letícia, com olhar desolado, deprimida.

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Leopoldo tornou-se um arquivo morto. Os que estavam ali eram arquivos vivos. Sabiam o que havia acontecido e se uniram num contrato de sangue que envolvia muito dinheiro. Leopoldo tornou-se carta fora do baralho, de consumidor inicial da menininha, acabou como fornecedor de duas mulheres que agora tinham outro dono.

Vi tudo aquilo, não tive estômago pra encarar, era demais pra mim. O que percebo é que sou um arquivo vivo, se Letícia der com a língua nos dentes, eles saberão que eu sei, então posso morrer como Leopoldo.

Sou um arquivo vivo e estou na mão de uma mulher que não confio. Mas pela desolação de Letícia naquele enterro, ela não vai querer repetir a dose de tristeza e também correr algum tipo de risco.

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Saí do mesmo jeito que cheguei. A escuridão vai me acompanhar pelo resto da vida fingida que levarei...