Encontrei
Fábio depois que tomei aquela bala na cabeça. Algumas coisas não estavam
resolvidas entre nós. Avistei-o numa espécie de crepúsculo, mas as dimensões
eram bem diferentes; parecia que o sol estava perto da minha cara.
Meu camarada também parecia estar perto, mas eu caminhava, caminhava, e
demorava pra chegar. Foi uma longa pernada até me aproximar – “isso só pode ser
algum tipo de punição pelos meus pecados... esse sol na minha cara, fritando há
sei lá quanto tempo! Porra... não chego nunca” – pensei comigo.
Enfim me aproximo de Fábio.
- E aí meu irmão! –
quando ele me olha o sol some e ficamos embaixo de uma luz fluorescente, como
se fosse uma sala de interrogatório. Olho pra cara do meu amigo e ela está toda
fritada do sol. Realmente o entardecer foi um alívio pra nós.
- Cara... a sua ‘cara’ tá cheia de bolha, queimaduras. Acho que está
derretendo! – continuei a conversa.
- Cara.... a sua também
tá assim! E com um buraco na testa! Você não está sentindo nada? Estou vendo um
pedaço do seu crânio!
- Vixi! Isso só pode ser
algum tipo de castigo!
- É... pode ser!
...
Sentamos no chão e vimos um garrafão de vinho a nossa frente, dois copos e
alguns charutos. Pegamos tudo. Enchemos os copos, acendemos os charutos com uns
fósforos que surgiram do nada.
Soltávamos baforadas e
mais baforadas. Olhávamos um pro outro, na escuridão! Todos os lados eram
escuros, apenas a pouca luz fluorescente refletia. A cara de Fábio está cada
vez mais fritada. Então disse:
- Cara... está saindo
fumaça pelo seu olho! (sorri).
- Cara... está saindo
fumaça desse buraco na sua testa também – (ele sorriu).
Lembrei que tinha algumas perguntas pra meu camarada.
- Véio, por que você foi
esfaqueado daquele jeito?
- Ué... como você sabe
que eu fui esfaqueado?
- Eu vi tudo!
- Sério?
- Pois é... mas agora já
era. Só me responde o por quê?
- É uma longa história.
- Porra... e daí? Até
parece que estamos com pressa!
...
Fábio me olhou e disse:
- Sabe aqueles chats
pornôs que tem na net?
- Sim, sei.
- Então...
- Então o que meu?
- Pô... sabe como é né.
- Não... não sei cara.
- A cara... sabe como
é... andei tirando umas fotos por aí, e como tinha uns contatos na net, comecei
a comercializar a parada.
Não podia imaginar algo diferente vindo desse cara.
- Sim, mas disso pra um
maluco te encher de facada, há uma distância muito grande né.
- Deixa eu terminar de
falar então porra! Fica atravessando a conversa!
- Tá... beleza...
continua cara... ficou sentimental agora?
- Vai te foder.
- Vai falar a porra da
parada?
- Calma, estou tentando
falar...
...
Fábio estava com a cabeça toda fritada. Muitas bolhas, sem pele e sem nariz.
Seus olhos já haviam virado fumaça – acho que eu também me encontrava no mesmo
nível de fachada. Mas ao mesmo tempo, meu camarada estava inspirado na oratória
e começou a explicar seu nobre negócio.
- Comecei a vender fotos pornôs. Tem gente que gosta de coisas muito doidas
cara, você não tem noção. Eu tinha um catálogo muito foda, era cabuloso meu
material.
- Mas você tirava que
tipo de foto? Como eram as fotos?
- Tinha vários tipos.
Mas as que mais vendiam eram com mulheres vestindo camisas de força, uma ‘botona’
com um salto de uns 20 cm ,
chicote, algema e a porra toda. Às vezes eu filmava também, mas elas tinham que
estar se espancando, a porrada tinha que rolar, o bicho pegar mesmo, sangue,
insanidade... é muita foda.
- Mas você tirava foto
de quais mulheres? Aonde você arrumava essas malucas?
- Cara... tem muita
gente doida, fazem qualquer coisa por grana.
- E pelo menos eram
gostosas as mulheres?
- Eu achava pelo menos!
- Sei... se for por você
elas eram da pesada... (rs).
- Então... mas aí que
tá, os meus clientes pediam mais fotos de gorda. Aí eu já unia o útil ao
agradável. Só gordona, tá ligado; 90
kg pra mais.
- Você tá tirando da
minha cara.
- Não cara, rolava uma
graninha legal.
- Mas ficar vendo pessoas
se espancando? Todo dia... cara.. isso não é vida!
- Porra cara... tava
legal o trampo...
...
Ele continuou:
- Então! Mas aí surgiu uma foto pra mim. Uma gostosa cara!
- Quantos quilos é
gostosa pra você? Uns 100 kg
tá bom né!
- Não zoa porra! Essa
era top mesmo.
- E aí, o que rolou?
- Disse pra ela que era
foto pra uma revista de moda, tal e tal... marquei pro outro dia, já acertado o
valor... aí ela foi ao meu estúdio.
- Você tinha estúdio?
- Uma espécie de
estúdio...
A cara de Fábio era uma caveira vermelha, em carne viva. Eu deveria estar
igual. Ele continuou:
- Quando a mulher viu o
tipo de foto, quis pular fora. Mas aí minha sócia trancou a porta. Demos umas
porradas na gata até ela desmaiar. Vestimos ela. A hora que ela acordou eu
estava gozando na cara dela!
- Puta que o pariu, a
que ponto chegamos ein?
- Eu já estava obcecado
pelo trabalho... aí minha sócia algemou ela na cama e fez de tudo. Foi tudo
filmado!
...
Eu estava bêbado de vinho e atordoado... o que havia virado Fábio! Ele
continuou...
- Cara, aí fizemos o
trabalho, quando terminamos, pagamos ela e saímos fora.
- Deixaram a mulher lá?
- Não... demos um boa
noite cinderela e a largamos na calçada. O problema é que o material
fotográfico acabou ficando com minha sócia. Aquela vaca me ferrou!
- Como assim?
- Me chantageou. Disse
que me entregaria, enquanto isso ela e o namorado, que eu nem sabia que
existia, tiravam uma grana vendendo as imagens.
- Mas por que você foi
morto?
- Eu não sabia que
estava sendo perseguido, me descuidei. O cara que me matou era o ex namorado de
minha sócia!
- Mas como você sabe
disso? Você morreu cara! Com quem você falou?
- É que ele matou minha
sócia também. Aí ela me disse.
...
Após Fábio terminar de contar, se abriu um clarão bem na nossa frente, como se
abrissem umas cortinas. Estávamos sendo ouvidos por várias pessoas sentadas.
Uma espécie de teatro, com grande público. Olhei pra frente e vi na primeira
fila duas poltronas vagas. O rosto do meu amigo não estava mais queimado, sua
fisionomia era a mesma de sempre, normal, sem marcas de facadas e nem bolhas.
- Parabéns Fábio, você contou sua história, falou a verdade pra todos que aqui
estão presentes, agora vá até sua poltrona e sente-se. O próximo é você... - uma
voz num microfone falou isso... percebi que o “próximo” era pra mim.
...
Ao ver meu amigo sentar na poltrona, perguntei pra voz:
- Esse monte de gente
fica aí sentado ouvindo as histórias dos recém chegados o tempo todo?
- Pela eternidade meu
nobre amigo!
- E se eu não quiser
contar minha história?
- Ficará com essa
fisionomia também pela eternidade!
Virei às costas pra multidão e caminhei em direção a escuridão, pois prefiro a
incerteza da estrada... e que seja pela eternidade.