sexta-feira, 11 de abril de 2014

Ninguém escuta o barulho do seu zíper



“No momento não tem condições”, disse Pedro Moraes a um dos seus advogados da empresa, que também é seu afiliado.

Aquilo bateu como uma dor de dente para o jovem advogado que estava cansado de ver e ouvir sempre as mesmas coisas.

Daniel queria melhorar as condições dos trabalhadores da empresa do seu padrinho. Isso geraria um investimento, porém a resposta negativa não era coerente, já que havia tanto processo trabalhista nas costas do empresário, que era mais benéfico o patrão atender a proposta do jurídico.

“As coisas doem!” – refletiu Daniel sobre algumas decisões no seu dia a dia.

A própria sociedade dá sinais de que o sistema falhou. O grau de “sanidade padrão” deixa todos insanos.

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“Você já deu sinais de defeito de fábrica? Tipo os defeitos que você critica?”.

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Daniel ligou o rádio enquanto estava parado num engarrafamento a caminho de casa. “Moralismo e Ética Profissional” é a chamada da entrevista. No momento já rola um bate-papo com participação do ouvinte. Maxis Gallenger é o entrevistado.

O convidado fala sobre como identificar os próprios defeitos. Agora entre um ouvinte:

“Você já deu sinais de defeito de fábrica? Tipo os defeitos que você critica?” – disse o ouvinte. “Claro!” – respondeu Maxis: “Preste atenção! A questão é não fazer igual aos problemas que critica” – “Mas doutor! Acho que a sociedade é tão hipócrita...” – “Calma” – interrompeu Gallenger: “O ideal é quando você identificar o problema, corrigir. Lembre-se: não é porque ninguém é perfeito que devemos aceitar a hipocrisia. Concorda comigo?” – “É, mais ou menos”.

“Ok! Para fechar, mais alguma coisa que gostaria de dizer?” – diz o jornalista que está intermediando o bate-papo ao ouvinte.

“Só mais um coisinha. Na verdade, ninguém escuta o barulho do seu zíper. Eu mesmo já fiz o que critico quantas vezes! Quantas vezes! Que isso não se repetiria ou aquilo eu jamais voltaria a fazer. Mas aí, quando menos eu espero, lá estou eu fazendo. E não é que as coisas só se repetem?” – disse o ouvinte, se despediu e desligou.

...

Agora o advogado coloca seu pendrive no som do carro e escolhe uma música.

“O ouvinte pirou legal!” – pensou Daniel. Foi uma coisa normal (a participação do ouvinte no programa de entrevista), mas houve uma perspectiva diferente no que foi falado. Chegou até a incomodar.

Aí sem mais nem menos Daniel leva um susto com o buzina que veio de algum carro atrás dele. Percebe a cagada que fez. “Mas que cara sem paciência”, pensa. Então segue o fluxo...

Após alguns minutos Daniel mete a mão na buzina e faz barulho porque o carro da frente estava parado enquanto o fluxo continuava. “Que filha da puta. Sai da frente! Vamos porra! Anda com essa merda”, esbraveja o jovem advogado.  

...

Por fim o trabalhador chega em casa. Lembra que seus vizinhos também são trabalhadores. Se coloca no lugar de todos os trabalhadores. Com seus defeitos e seus problemas.  Eles passam entre si, se olham, se cruzam, trocam palavras. Se sentem iguais por um momento. Como a felicidade: momentânea.

E todos eles se conformam que o amanhã já nasce desigual. E com muito moralismo e ética profissional, se sentem sozinhos.