terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Desligar robô é coisa de humano

Com Alvarenga liberado, explicamos quem era AXN. Nosso amigo estava muito puto e resolvemos deixá-lo descarregar sua raiva. Tiramos Arnoldo do carro, isso após entrarmos no meio de uma estrada de chão que ia pro meio de um milharal.

Achamos um lugar quieto, vamos assim dizer. Colocamos um Ramones – Loco Live – e tiramos AXN do carro. Nosso robô ficou em pé, desligado. Dissemos pro Alvarenga fazer o que quisesse, ele nos olhou e não pensou duas vezes, correu em direção ao andróide e pulou com os dois pés no peito dele.

Foi um belo golpe. O robô caiu de costas. Eu e Jack não aguentamos e rimos. Alvarenga levantou AXN novamente e desta vez pegou mais distância. Veio numa velocidade e foi com os dois pés novamente no peito do robô. Mais uma bela cena, daquelas que não há como não dar risada.

“Agora é a minha vez” – pensei comigo. Quando Alvarenga levantou AXN novamente eu fui correndo e pulei com os dois pés no peito do robô. Só escutei as risadas dos meus amigos. Depois foi a vez do Jack e assim nos divertimos até cansar.

Agora, pra seguir viagem, AXN foi pro porta malas.

...

Era pra esse fim de ano ser o mais explosivo possível. Porém Alvarenga não era mais o mesmo, havia passado uns dias na cadeia e perdido grande parte da sua fortuna. Jack e eu ficamos um pouco desanimados, pois achávamos que eles fariam uma dupla perfeita.

Na minha mente ainda convenceria Alvarenga e entrar na jogada. Foi aí que ele veio com um papo estranho, conversa de natal e ano novo, que nós não podíamos fazer aquilo com ele, pois tinha compromissos de fim de ano com sua família e esse tipo de coisa.

Agora já era tarde, na verdade se ele tivesse uma entrevista com o papa, não deixaríamos nosso plano.

Infelizmente Alvarenga não parava de falar e entrou num papo de religião, que havia virado crente e que mudou de vida. Puta merda, dissemos que era hora de ligar AXN e colocar nosso pastor no porta malas novamente. Quando explicamos a ideia, Alvarenga voltou atrás e disse que estava tentando nos enganar.

Jack sabe quando nosso amigo está mentindo, eu também sei... acho até que AXN já deve saber, mas não iríamos ligar nosso brinquedinho pra tirar a prova, até porque nos últimos dias ele se comportou com muita folga e sua punição seria essa. Ficar desligado, algo como um descanso pra nosso cérebro.

...

Em casa, eu e Jack estávamos visivelmente cansados. Sugeri a Jack ligar AXN pra cuidar do Alvarenga, pois ele havia mudado e não podíamos pensar em sua fuga. Concordamos com o plano e nosso andróide foi religado.

Foi aí que percebemos AXN um pouco mudado. Acho que devido às pancadas que demos nele, o efeito do cogumelo se tornou predominante. Concretizou-se o fato de que ele é uma criatura louca.
Bom... explicamos o que ele devia fazer, mas o filha da puta nos olhava e só babava.

Jack veio dizer que seria interessante chapar Alvarenga pra que ele se identificasse com nosso andróide. Não achei uma boa ideia, apenas trancamos as portas e ficamos com as chaves. Estávamos num apartamento, nenhum dos dois iria se jogar. Talvez o robô pudesse, mas não teria problemas, só montaríamos o quebra cabeça outra vez.

...

Fui dormir sabendo que a conversa dos dois seria gravada. Quando acordei Jack já estava com o café pronto. Alvarenga dormia e AXN estava desligado.

- Por que desligou o robô? – perguntei a Jack.
- Porra cara... ele está muito chato, ainda mais cogumelado o tempo todo!
- Pois é... como vai ser um terrorista assim?
- Estava pensando a mesma coisa cara. O que vamos fazer com esse bicho aí?
- Também não sei Jack.
- Bom... gravei a conversa, tirei do AXN e estou passando pro computador, já saberemos.
- Vamos ver sobre o que eles conversaram.

...

Alvarenga acordou com o cheiro do café. Olhou pra mim e depois começou a dar risada sozinho.

- Cara! Esse robô é muito louco bicho – nos disse.
- Vamos escutar o que conversaram! – disse Jack.

Alvarenga não relutou. Então começamos a ouvir a conversa dos dois na madrugada.

...

Começo da conversa entre Alvarenga e AXN:

- Então você é um robô terrorista?
- Na verdade eu sou um artista, com espírito terrorista, pensamento revolucionário e que não passa de um chapado desregulado! – respondeu AXN.
Demos risada e ouvimos a risada de Alvarenga na gravação.
- Aí fica difícil ser uma dupla contigo, se você não tem controle dos seus atos meu amigo!
- Eu nunca quis ser uma dupla contigo, na verdade queria uma dose de chá pra ficar legal.
- Que merda é essa cara, você só pensa em se drogar?
- Olha só como eu enrolo esse baseado! – AXN bolou sem pilão e ainda jogou o baseado na parede e disse que o bem bolado é esse que você joga contra a parede e quase quebra a parede.
Mais umas risadas, aí Alvarenga olhou pra mim e disse:
- Porra cara... ele fala as coisas que você fala!
- Também o Jack meteu experiências neurais minhas nesse trambolho aí.
- Sim... mas achava que você não fosse tão retardado, se soubesse colocaria experiências neurais de alguma pessoa normal... tinha que ser dessa sua cabeça maldita aí... puta merda! – disse Jack.

Alvarenga pediu pra passarmos a gravação até uma história que AXN contou, que na verdade pode ser minha, ou sei lá de quem. Eu é que não lembro, mas o fato é que esse robô é meio lesado realmente.

- Cara... ele conta uma história que é uma lição pra vocês seus retardados. Na verdade é o que você pensa (apontou pra mim), mas se esqueceu com o tempo. É o que você também pensa Jack, mas com o tempo esqueceu. Eu também tinha esquecido...

...

Alvarenga apontou a hora em que era pra deixar o papo correr. AXN começa com o papo:

- Veja bem Alvarenga, faz quanto tempo que não nos vemos?
- Faz tempo cara... faz muito tempo! – deu pra perceber a ironia, já que Alvarenga nunca tinha visto AXN na vida.
- Então... pensamos demais em acabar com as coisas e estou vendo que não acabamos com nada. Acabo sendo um fantoche como os outros. Acho interessante esse papo de reunir os amigos pra fazermos algo, acabar com a podridão. Mas somos podres também!
- Isso é verdade!
- Gostava daquele tempo romântico em que caminhávamos com nossas moedas no bolso atrás de festas pela cidade, sem compromisso. Hoje isso se perdeu. Mas você lembra como era lá em Cascavel né?
- Claro que lembro!

...

Alvarenga interrompeu a gravação e disse:

- Cara... ele fala pra mim e pro Jack como se fosse você. Ele não entende que você existe, ele é você! – apontou pra mim.
- Sim... acho que exagerei na dose neural. O que vamos fazer? – disse Jack.
- Vamos ouvir... vamos ouvir... – disse Alvarenga.

Eu estava meio tonto com tudo isso.

...

AXN continuou:

- Eu e o Jack passamos algumas dessas também, caminhando pela cidade atrás de algum lugar pra comprar gole. Uma vez nós nos perdemos em Curitiba. No meio do caminho, perdidos, para um cara pra pedir informação. Nós, logicamente, o orientamos como se soubéssemos onde estávamos.

Só ouvimos risadas.

AXN continuou:

- Esses tempos atrás eu e um camarada encontramos Jack em Blumenau, fiquei feliz que estava bem. Fui lá levar uns amigos pra trabalhar e aproveitei pra falar com meu camarada. Essas coisas são legais. Faltam na nossa vida... rever alguns amigos antes que se vão de verdade.
- Porra... você é um robô muito humano!
- Eu... robô? Como assim?
- Deixa pra lá... continue...
- Eu tenho um plano!
- Sério. Qual?
- Então... agora... nas festas de natal, podíamos fazer uma dessas... aproveitar que estamos nós três reunidos, vamos encher a cara por aí?
- É uma boa ideia, mas preciso dormir agora AXN...
- Tudo bem...

...

Não teve mais conversa. Alvarenga dormiu e assim acabou o papo. Olhamos-nos e quase nos comovemos com o papo do robô.

- Então... essa minha ideia é boa né? – eu disse.
- Ah... cala a boca, vai querer dizer que a ideia foi sua? – disse Alvarenga.
- Claro porra... o AXN tem praticamente meu cérebro porra.
- Ele tem todo seu cérebro... acho que eu tirei seu cérebro e botei nele, só pode – brincou Jack.
- Porra... sério agora. Estamos nós aqui. Já estamos na merda. Tem as festa por vir. Vamos seguir o conselho do AXN e tomar todas antes que nunca mais nos encontremos, pois está cada vez mais difícil encontrar os verdadeiros amigos!

Nos olhamos e olhamos pro robô.

- Vamos ligar o AXN? – disse Jack.
- Acho que sim – eu disse.
- Eu acho que não cara. Ele é um robô porra... nos deu a ideia, mas não tem noção de nada... foda-se cara... acho que devíamos desligar ele e nunca mais ligar... isso sim! – argumentou Alvarenga.
- Pô... mas deu trabalho pra caralho tudo isso! – falou Jack.
- É cara... passamos por uma puta aventura!
- Foda-se cara... isso serviu pra nos unir... apenas isso. Uniu vocês e vocês vieram atrás de mim. Agora vamos atrás de mulheres e bebida!

...

Natal e Ano Novo numa boa. Éramos nós numa Curitiba vazia. Caminhamos como adolescentes, nos embebedando e falando muita besteira. Passamos por zonas, botecos e tudo quanto é moquifo. Tocamos o terror nas festas de família e mostramos como é diversão.

Por onde passávamos ficava nossa mensagem de amizade e paz. Comemoramos com mendigos que mais pareciam familiares. Seus cachorros não mordem esta noite. Esses foras da lei estão nas estatísticas, mas não nas retrospectivas. Assim como nós.

Não esquecemos que somos insignificantes nesse mundo podre, mas lembramos que somos amigos, ainda temos essa capacidade. Esse instinto nós herdamos dos animais muito mais velhos que nós. Esquecer amigos, abandonar amigos, isso é coisa que nós seres humanos cultivamos. Cada dia aumenta a solidão e a depressão neste mundo.

...

Após as festas precisávamos voltar a nossa realidade. Olhamos um pra cara do outro depois dos velhos dias de luta.

- A vida vai continuar? – eu perguntei.
- A vida vai continuar! – disse Jack.
- A vida vai continuar! – disse Alvarenga.

Antes precisávamos decidir o que fazer com nosso robô. Simplesmente arrancamos toda pele dele, como se fossemos canibais numa ilha escondida em algum lugar desconhecido. O deixamos como ele realmente era, pois ele nos trouxe o que realmente somos. Então Jack abriu sua cabeça e tirou um aparelho que coordenava todas suas funções.

Jack meu deu o objetio:

- Fica contigo. Não esquece que ele é uma pouco de você, é um pedaço da nossa amizade também!
- É isso aí – eu disse.
Então Jack foi pra Blumenau, Alvarenga pra Foz do Iguaçu e eu pra Itapema. Deixei a carcaça do AXN em minha casa, enquanto fui viajar um pouco. Antes de nos despedir Alvarenga disse:
- Quando você estiver em frente ao mar. Abra uma gelada e brinde pra nós!

...

É isso... cada um pra um lado. Comunicamo-nos a distância, através de máquinas, através de robôs... nos tornamos máquinas aos poucos, com ações robotizadas e previsíveis, como se fossemos binários. Aos poucos os andróides é que nos farão surpresas diante da nossa mesmice e mediocridade.

Nós iremos desligá-los ou eles é que nos deletarão?