sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O sumiço do Diabolô




Capítulo I – Inocentes

Dionísio e ‘Porco Fumo’ estão preocupados. A bem da verdade é que estão desesperados! Uma dupla sem rumo.

Mas esse desespero todo tem um motivo: o sumiço do Diabolô.

...

- Porra ‘PF’, quantos dias já deu?
- Deu o quê?
- Os dias...  – respondeu Dionísio.
- Sei lá.

Eles falavam sobre o tempo de sumiço do Diabolô, dono do boteco favorito da dupla.

...

“Será que tem alguém  que sente falta de mim?”, pensava Diabolô, pitando seu cigar.

Da janela de um apartamento perto da rodoviária de Brasília, aquele homem se preparava pra voltar.

Diabolô pegou sua mochila, trancou a porta do quarto do hotel e caminhou até a recepção.

...









*Letra e música do compositor Paulo César Pinheiro em parceria com Eduardo Gudin. Um marco da MPB e não tão famosa quanto deveria (nota do autor).

...

- Caralho irmão, não sei não... será que falamos com a polícia?
- Acho melhor procurar os familiares antes.
- Pode ser... mas mano, não sei nem o sobrenome do Diabolô! – disse Porco Fumo, também conhecido como PF.
- Pois é cara, pra você ver como é importante saber o nome das pessoas. O seu, por exemplo, eu não sei... hahaha – revelou Dionísio.

Dionísio e Porco Fumo falavam ao celular. Isso ficou mais frequente após o sumiço do Diabolô.

...

Estava tudo confuso, um sumiço é sempre um sumiço.  Muitas coisas surgem quando uma coisa some.

Os amigos se encontravam quase todo dia no bar do Diabolô. Porém naquela segunda feira, um dia após o histórico show de horrores no Congresso Nacional, a dupla parou em frente ao rotineiro bar e se deparou com as portas fechadas.

Nenhum sinal. Nenhuma explicação. E o tempo passou. Os dias passaram e as noites não foram mais as mesmas.

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Sim. Não. Deus. Jesus. PT. PSDB. PMDB. PP. Partidos. Políticos. Corrupção. Lava isso, lava aquilo. Operação. Juiz. Moro. Mensalão. Petrolão. Dilma. Impeachment. Lula. Temer. Cunha. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro...

Palavras escritas na porta do banheiro da casa do Diabolô, pelo próprio; com uma faca.

...

Agora, sentado num banco da rodoviária de Brasília, Diabolô sabe que muita coisa mudou. Até o governo não é mais o mesmo. Porém, o mais importante, é que aquele homem que resolveu subitamente viajar pra capital federal, também está diferente.

...

Tudo começou no dia 17 de abril de 2016

Diabolô estava em estado de choque após assistir a votação dos deputados federais. Naquele dia o Congresso Federal já abriu num dia atípico – domingo.

Uma transmissão. Uma votação. Um dia importante pra história. A votação do impeachment da presidenta Dilma foi televisionada. Foi ao vivo.    

Após assistir tudo aquilo, tomou conta do seu corpo um sentimento insuperável de descrença. Aquela angustia e desesperança ficou tão evidente que Diabolô simplesmente vegetou. Paralisou!

Não se mexeu a partir daquele dia. Não saiu da cama. Não acendeu a luz. Desligou todos os aparelhos eletrônicos. Um colapso. Tilt. O bug diabólico do Diabolô.

A única coisa que funcionava era seu pensamento. Suas lembranças. Mas no campo da realidade, era como se o mundo começasse naquele instante. Era como se o universo dele iniciasse pela escuridão e das sombras tivesse nascido. Parido pela obscuridade.

Diabolô não sabia mais se levava sua vida da forma que deveria. Se estava no caminho certo. Não sabia se ter um bar era realmente o que queria. Não sabia mais de nada.

Lembrava que tinha um avô dono de bar que sempre reclamou dos impostos neste país e após décadas isso não mudara! Mas não eram somente as taxas que o incomodava.

A imagem de parentes e pessoas próximas o ofendendo por ter um pensamento humanista o deprimiram em uma proporção sem tamanho. O descrédito no olhar das pessoas que o julgavam como colaborador das mazelas corruptas de um país historicamente corrupto o derrubaram.

Pensava consigo – “A educação falhou! Não é novidade saber que um povo ignorante é tudo que qualquer estrutura deseja. Me parece que o Brasil é um prato cheio”.

Os sinais de depressão vieram mais nitidamente quando chorou ao ter em mente lembranças tão vivas das ofensas vindas de pessoas que antes ele queria por perto. “Como essa politicagem pode me influenciar desta forma? Eu devia estar fortalecido e com motivos pra lutar, mas estou infeliz e incapaz de dar um passo pra fora da minha casa!” – seus olhos brilhavam no escuro. 

Diabolô se remói quando lembra das pessoas queridas que pensam diferente dele (não pelo fato de pensarem diferente, pois isso ele acha ótimo), o que dói pra ele são as palavras e atitudes de menosprezo pra depreciar seu pensamento; principalmente dentro da sua própria família.

Sim, é isso mesmo. Diabolô tem dois irmãos. Um deles quer explodir o PT com discurso de ódio, mas quando está sem dinheiro, pede ajuda financeira pra sua tia petista, que é professora aposentada. A outra faz a mesma coisa: quando está sem dinheiro, recorre aos pais, de esquerda, que sempre foram da classe trabalhadora.

A verdade é que ele já não sabe mais em que mundo se encaixa. Sua caixa está fora da casinha.

Então Diabolô volta a rabiscar. Pega sua faca, herdada pelo seu avô; que também foi dono de boteco, e escreve na parede do seu quarto algumas frases que lhe vem a mente. São pequenos trechos de letras da banda paulista Os Inocentes.

...

Você me prende vivo e eu escapo morto” – Diabolô escreveu a frase da música Pesadelo. Um cover do Inocentes pra música já mostrada no início deste texto. Neste momento sua ideia do “tudo ou nada” começa a aflorar.

Depois desfilam impunes pelas colunas sociais” – a música Vermes, do álbum Ruas (1996) é de uma atualidade incontestável. E ela motiva Diabolô a começar sua jornada de raiva.   

A raiva vai nos salvar” – é a cereja no bolo. Agora nosso personagem começa a entender o que sente e vai em busca da sua salvação. Também do álbum Ruas (1996), uma música de autoajuda pra Diabolô: “mentiras viram cacos de vidro”.

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“Ninguém é inocente hoje em dia. E antes que o cansaço me derrube, vou cumprir minha missão; essa que já tem sua trilha sonora” – Diabolô. 







Capítulo II – Ele disse não  


Venho por meio desta, com sua permissão, apresentar-me como Diabolô. Uso desse nome, pois assim sou conhecido.

Como eu vim parar aqui?

Em uma breve análise, vi que já era hora de chegar com os dois pés na porta, definir uma metodologia e esquecer que um dia pensei que isso fosse tarde demais. 

Olhar pra trás e ver os estilhaços. Saber que essa explosão se espalhará pelo chão, atemporal e num só movimento.

Agora já não me vejo mais parceiro da minha ‘autosociedade’. Minha consciência tenta clamar uma volta, mas não tenho mais hora pra voltar! Vou agir sozinho.

Fiz da minha vida um contrato falso. Com cláusulas desconfiadas, cercado de pessoas que se mantém cumplices de tudo.

Os segundos podem ser curtos, mas a intensidade do que vier a acontecer pode redirecionar nossas vidas.

Cansado de falar sozinho e blasfemar meu ódio à sociedade, aqui vou eu... pois ainda há tenho tempo pra me vingar.

...

Com lágrimas Dionísio e Porco Fumo leem os manuscritos do amigo espalhados pelo quarto. Diabolô havia sumido e ninguém sabia seu paradeiro (leia capítulo I).

Porém, após uma triste caminhada de averiguação cotidiana, mesmo que desanimados, em direção ao bar; tiveram uma surpresa: a porta estava aberta!

Era o que eles precisam, do “Bar do Diabolô”.

Quando entraram viram uma outra pessoa. Se apresentaram e aquele homem revelou-se o irmão desconhecido do sumido amigo. Ele estava empilhando as coisas. “Diabolô não voltará” – disse ele.

Depois do choque, os amigos tiveram permissão pra entrar nos cômodos escondidos daquele lugar. 

Foi então que se depararam com frases escritas nas paredes do quarto do amigo, garrafas vazias pelo chão, livros jogados, discos quebrados. Mas o que mais intrigou os amigos foram os manuscritos.

...


- Alô.
- Fala Djou, beleza?
- Beleza. É quem?
- É o Diabolô.
- E aí, o que manda?
- Eu quero aquele brinquedinho. Preciso fazer uma viagem e vou levar...
- Ok. É só passar aqui com a grana e pegar, meu chapa. 
- Claro. Até mais.

Diabolô foi até um sítio no interior de Curitiba encontrar um antigo camarada. Ele estava disposto a comprar uma Glock Calibre 380.


...

“Foda-se se Eduardo Cunha recebia propina por suas atividades ilícitas
Não me importa se Bolsonaro é e tem fieis fascistas e Feliciano também
Ou se Romário protege Eurico Miranda e é só mais um palhaço, igual ao Tiririca”

Os amigos liam coisas bizarras e começavam a se surpreender com tanto ódio. 

- Onde será que esse cara se meteu?
- Não sei Dionísio. Você sabe que eu sei tanto quanto você. Que saco, pare de repetir essas mesmas perguntas de merda. 
- Calma cara. Isso aqui já é muito ódio em uma pessoa só!
- Depois de acabarmos aqui vamos até o irmão dele matar nossa curiosidade.
- Mas ele não quis dizer nada!
- Uma hora ele vai ter que abrir o bico; ou então não sairemos daqui. 

O nervosismo abalara ambos. Eles se perguntavam sobre o amigo, mas não sabiam nem das raízes de Diabolô; muito menos se aquele cara que estava no bar era realmente seu irmão. 

...

- Cara, você é o único que pode me ajudar.
- O que você ainda quer de mim?
- Eu preciso de ajuda. Tudo voltou!
- O que você ainda quer de mim? Já te dei um bar. Já te dei dinheiro. O que você ainda quer de mim?
- Você é meu irmão, é a única coisa que ainda me resta.

E o telefone desligou.

Diabolô já não tinha mais chão. Todos os problemas misturados  com a realidade fizeram o passado vir a tona, as lembranças voltaram.

...

O plano de Diabolô era algo amador. Era como um ataque terrorista. Como um blitzkrieg nazista chapado do metanfetamina e armado com uma Glock.

Mesmo assim, comprou sua passagem pra Brasília...

E lá foi ele com sua arma, uma confusão em sua cabeça e todo o rancor que uma pessoa pode carregar na bagagem.

Diabolô entrou no ônibus, ainda estava sozinho na poltrona; e sem explicação começou a chorar. Logo depois, uma senhora de idade se aproximou, ofereceu um lenço e também se sentou.   

“Está tudo bem? Pelo jeito teremos uma longa viagem” – disse ela.

...

PF olha pra Dionísio e fala com lucidez:

Olha cara, essas coisas que estamos lendo são tão loucas que fico assustado. Será que ele foi fazer alguma besteira? Eu sinceramente espero que não. Espero que ele esteja vendo que nada vale a pena, que tudo é falso. Olha tudo que estamos vendo! O show de horrores não tem fim. O Temer tirou de tramitação urgente as pautas contra a corrupção e ninguém faz nada. Nós não fizemos nada!

Se todo aquele alvoroço do povo, nos últimos anos, era contra a corrupção, o que está acontecendo? Por que esse silêncio da sociedade? A prioridade não era o combate a corrupção? Ninguém reage.

Não sei o que dizer. Se eu fosse um serial killer, estaria deprimido, pois faltaria munição pra me vingar de tanta gente estúpida. Será que ele viu o Cunha chorando?  Será que ele está vendo toda essa conspiração pra salvar esse bandido?”.

Estava na hora de resolver algumas coisas.

Foi quando os dois amigos levantaram e foram em direção ao que disse ser irmão do Diabolô.

...

- São lágrimas sinceras de quem não acredita mais em promessas – disse Diabolô a senhora ao seu lado.

Então o ônibus ligou. Ele olhou a paisagem em movimento. Sabia que sua decisão era uma porta fechada pra vida; porém o que não sabia é que a vida pode estar pro lado de dentro da janela, bem ao nosso lado.












  
Capítulo III – Intolerância







(*Inocentes – Intolerância).

...

- Ele tá vindo.
- Ele quem?
- O idiota do nosso irmão.
- O quê?
- Sim, me ligou. Já pegou o ônibus pra cá.
- Meu deus...
- Pois é... 
- Falei pra você! Mas não, preferiu ajudar.
- Eu sei disso... se arrependimento matasse...  
- É... mas podemos morrer por causa desse merda. Então acabe com ele.
- O quê?
- Isso mesmo, acabe com ele.
- Eu não posso fazer isso. Não consigo ir tão longe. Dá outra vez já não consegui.
- É... daquele vez eu deveria ter resolvido.
- Pode até ser... só sei que eu não consigo.
- Mas eu consigo. Me mantenha informada. A chegada desse imbecil pode atrapalhar as nossas coisas. Esqueceu da política? E que até hoje o pastor arrependido ora pela alma do seu filho e do nosso irmão?

...

- Então moço... qual é a sua graça?

Diabolô tinha enxugado suas lágrimas com o lenço que sua ‘vizinha’ de poltrona oferecera.

Depois de um longo silêncio, foi questionado:

- Meu nome é Enzo. Enzo Lino.
- Prazer Enzo. O meu é Maria da Graça.
- Prazer...  -  e deram-se as mãos.
- Olha moço. Preciso ir direto ao assunto, nunca me aconteceu de chegar num ônibus e ver um homem chorando igual criança. Acho que qualquer um gostaria de saber o que é que aconteceu! Não é?
- É.

Fez-se um silêncio, brevemente interrompido por Maria.

- Pois então  ‘homi’ de deus, desembuche logo!
- Olha senhora, eu gostaria de não falar disso...
- Olha aqui... você pode até mentir pra mim, mas alguma coisa terá que falar. Como é que eu vou dormir? Não sei nem quem está ao meu lado. Imagine! Se coloque no meu lugar. Vai viajar e, sem mais nem menos, encontra um marmanjo chorando desesperadamente... o que você quer que eu faça?
- Desesperadamente também não né, não precisa exagerar...
- Desesperadamente sim senhor...
- Olha aqui... tudo bem. Calma. Eu não vou machucar a senhora.
- Então desembucha logo; ou vou falar com o motorista...
- Não não! Imagina. Já disse... calma... é que o assunto me deixa um pouco confuso e triste.
- Percebi. Mas não adianta moço... é sempre melhor desabafar.
- Bom... não sei por onde começar...
- Com isso eu posso te ajudar: comece dizendo o motivo de estar dentro deste ônibus...

(capítulos I e II).

...

- Como é o seu nome de batismo ‘PF’? – perguntou Dionísio, enquanto descansavam na cama.
-Hum... Já é hora de você saber, né?
- É – e ambos sorriram e trocaram carícias.
- Meu nome é Otávio, mas quero que você continue me chamando de ‘PF’.

Quando os dois amigos se aproximaram pra tratar do sumiço de Diabolô, sem perceber, passaram a se ver todos os dias. Com o tempo, o principal motivo pra estarem juntos já não era mais o amigo. Não era mais uma simples reunião pra desvendar um mistério.

A sensação foi reciproca e depois de algum tempo se enganando, Dionísio e Otávio formaram um casal.

- O amor é uma coisa louca, né? Quando nós imaginaríamos que depois do desaparecimento dele, viraríamos namorados?  - perguntou ‘PF’.
- Nossa, é verdade. Como será que ele iria reagir?
- Olha, eu acho que seria da melhor forma possível. Nunca disse nada, mas as vezes eu até desconfiava que ele curtia ‘homi’... 
- Ué... Por que?
- Sei lá... vai ver é meu sexto sentido.
- Hum... até parece...

...

Diabolô não sabia o que dizer. A única certeza era de não dizer a verdade...

- Bom... estou indo pra Brasília participar de uma manifestação contra esses políticos corruptos. Esses deputados preconceituosos, que beijam a bíblia quando acordam e pisam na cabeça das pessoas enquanto caminham.
- Nossa! Jesus Ave Maria José! – se espontou aquela mulher; que continuou: “mas qual o motivo de tanta raiva nesse coração?”.
- É difícil dizer... é uma mistura de revolta, ódio, vontade de mandar todo mundo a merda, sabe. É difícil. Não sei exatamente o motivo... só seu que eu fico puto.

Diabolô, na verdade, entrou naquele ônibus com o único e exclusivo motivo: vingança. É claro que ele não revelaria, por exemplo, que seu pai era um ‘homem que bebia demais’, que também batia, abusava, etc. Não escapou ninguém. Nem Diabolô, nem seus irmãos e nem sua mãe. 

- Querido! Pra tudo nessa vida tem um motivo. Até pra crucificar Jesus eles arrumaram um motivo.

Diabolô lembrou que Jesus foi o principal argumento pra sua família sair do buraco. 

Sua irmã se casou com o chefe do tráfico na região periférica de Brasília. Agora eles tinham um novo ‘pai’.

Você pode se perguntar: mas onde entra Jesus nessa história?

Quando os dois irmãos do Diabolô, ao lado do cunhado, viram que a polícia estava na ‘cola’, conheceram umas pessoas do ‘ramo da religião’. Elas faziam uma espécie de “processo seletivo” nas favelas e presídios da região; a família do Diabolô aceitou o recrutamento.

A grande verdade era que todo aquele processo de “mudança religiosa” só serviu pra aumentar o poderio deles. Lavavam dinheiro, traficavam e propagavam uma falsa ideia de salvação.

- É verdade. Realmente Jesus deve salvar. O que mais se ouve lá em Brasília é político bandido louvando ao senhor Jesus, não é? Todos anjinhos glorificando o senhor. Todos os dias são marteladas e mais martelados no corpo de Jesus Cristo... todos os dias a hipocrisia consegue escrever ‘torto por linhas retas’, todos os dias...
- Moço! – interrompeu a mulher. “Pare de blasfemar. Os irmãos que lá estão, com toda a certeza desse mundo, seguem a palavra de deus.

Diabolô resgatou algumas imagens das festas na sua casa. Lembrava dos pastores cheirando cocaína e transando com prostitutas. Lembrava das armas escondidas nas igrejas. Lembrava da sua mãe adoecendo. 

- Sim, você está certa. É por isso que eu vou pra Brasília, pra ficar ao lado de quem defende a palavra do senhor. A palavra da salvação.
- Sabe meu amiguinho, tudo nessa vida se resume ao amor...

...

“AMOR!”.

Essa palavra bateu forte no coração do Diabolô. Veio a imagem do seu primeiro namorado. Seu grande amor.

Logo em seguida, vieram as manchas de sangue.

“Vá embora, nunca mais volte, seu gay nojento” – gritou seu irmão, ao descobrir que Enzo mantinha uma relação homossexual com o filho de um dos pastores da igreja.

Então lembrou-se do barulho do tiro...

“Eu deveria ter ficado e morrido”, pensava consigo.

O irmão de Diabolô o deixou com dinheiro e prometeu ajuda-lo, se fosse embora e nunca mais votasse.

Enquanto fugia... escutou a execução do seu primeiro e único amor.

Na cabeça do pastor, pai do seu namorado, os dois haviam morrido. Por isso a chegada de Diabolô poderia complicar as coisas para os seus irmãos.

- A senhora é ‘a face de deus’. 

...

A cada quilômetro rodado, a fúria daquele homem aumentava.

Diabolô percebeu que era melhor pensar.

Afinal, sua chegada significava a volta de um defunto.

E como explicar a volta de um cadáver?








CAPÍTULO FINAL







...

- Alô.
- Olá pastor... 
- Opa, conheço essa voz!
- Que bom! Mas e aí, tudo bem?
- Tudo querido, tudo bem e você?
- Tudo bem também. Olha só, gostaria de te convidar pra vir até a igreja, minha irmã tem uma surpresa pra nós.
- Opa! Adoro surpresas. Que horas?
- Daqui mais ou menos uma hora e meia. Posso confirmar sua presença?
- Ok, pode confirmar.
- Certo.
- Mas você não pode adiantar o assunto?
- Olha, parece que tem ligação com aquele assunto antigo do seu filho e do meu irmão, mas não sei ao certo.
- Como é que é?
- Sim, também fiquei surpreso quando ela me confidenciou.
- Não estou entendendo mais nada. Porque desenterrar isso? Ainda mais agora que estamos entrando na política?
- Eu também não sei. Por isso é melhor termos descrição. Não comente com ninguém. Principalmente pela gravidade do assunto. Imagina se nossos eleitores descobrem o que houve!
- Não podemos deixar isso vazar...
- Então contamos com a sua presença?
- Claro. 
- Ok. Até mais.

...

Agora, sentado num banco da rodoviária de Brasília, Diabolô sabe que está encrencado. “O que foi aquilo! Sabia que ia dar merda. Não devia ter vindo!” – fumava um cigarro atrás do outro enquanto aguardava o ônibus.

Foi quando alguém se aproximou e discretamente apontou uma arma pra ele.  “Fui usado” – pensou. Desesperado fez o que era preciso pra não levar uma bala na cabeça. Pelo menos até aquele momento.

...

- Ele está vindo.
- Ótimo. Você não comentou com ninguém, né?
- Claro que não.
- Ok. Estou indo.
- Tudo bem. Fico no aguardo. Ele disse que levará mais ou menos uma hora. 
- Certo. Assim posso inventar uma história pro meu marido e ir até você.
- Tudo bem, fico no aguardo.
- Mas você fez o que eu te pedi?
- Sim, só nós estaremos aqui.
- Ótimo. Deixe que eu faço o serviço e depois você cuida do corpo.
- Tem certeza que essa é a única alternativa.
- Sim, essa é a única alternativa.

Os irmão de Diabolô estavam preparados pra ações diferentes.

...

Após deixar as coisas no hotel, Diabolô pegou um táxi rumo a região periférica de Brasília. No trajeto, as piores lembranças. Seu alento era a presença da sua pistola; uma falsa esperança. Até porque ele nunca atirou em ninguém.

O pastor que havia recebido a ligação do irmão do Diabolô também estava armado. Era comum ele transitar com uma pistola na cintura, pois mandava e desmandava na periferia da capital federal. Sua vida consistia em pregar uma falsa libertação e escravizar sexualmente algumas ninfetas.

No entanto, as lembranças do seu filho ainda o assombrava. O passado ofuscava toda sua vida de poder e luxo. E ele sempre acreditou que a irmã de Diabolô tivesse tido pena do irmão e só puniu seu filho: “aquele corpo não era dele, tenho certeza. Hoje me vingo daquela cadela dos infernos”.

O irmão do Diabolô sabia dos traumas do pastor. Então usou isso a seu favor.

...

Os irmãos de Enzo já estavam na pequena igreja dentro de um complexo periférico. Eles exploravam a carência das pessoas e dessa forma estabeleceram um hegemônico grupo criminoso.

Não só os dois, o pastor também era uma figura importante na hierarquia da facção, além do cunhado do Diabolô; que vislumbrava uma carreira política.

E todos trabalhavam pra que esse projeto desse certo.

...

Dionísio e ‘PF’ estavam nervosos. Já haviam vasculhado o quarto do amigo desaparecido e não sabiam mais o que fazer.

Já era hora de conversar com aquele que dizia ser o irmão do Diabolô (Leia capítulos I, II e III).

Então saíram da parte interna do bar e foram até o balcão. Lá encontraram aquele homem que mexia em tudo e jogava muitas coisas no lixo. 

- Ei, você é irmão mesmo do Diabolô? – perguntou Dionísio.
- Enzo. Seu nome era Enzo.
- Era? – se surpreendeu ‘PF’.
- Sim. Era. Enzo está morto.
- Como é que é? Seu... – Dionísio pensou em ir pra cima daquele homem, mas foi contido pelo seu namorado.
- Calma! Como assim está morto? Queremos saber de mais detalhes, ele era nosso amigo.
- Ele nunca comentou comigo que tinha amigos. De qualquer forma, sim, ele está morto. Foi atropelado, quando foi visitar nossa família em Brasília. Já foi até enterrado. Esse bar, por exemplo, ou melhor, este estabelecimento, é meu. Eu dei pra ele.

O casal ficou chocado. Foi então que ‘PF’ perguntou:

- Mas isso faz quanto tempo?
- Alguns dias.
- E você vai continuar com o bar?
- Não, aqui vou montar minha igreja.
- Quer dizer que vai jogar todas essas coisas fora? – continuou ‘PF’.
- Sim.
- Bom... se vai jogar fora, você não vai se incomodar se nós pegarmos algumas lembranças, não é?
- Não. Pode pegar, depois vão embora, pois tenho muita coisa pra fazer aqui nessa espelunca.

O casal estava chocado, mesmo assim, começaram a recolher os objetos. Com lágrimas, fizeram o que tinha que ser feito e foram embora.

...

Hoje, nada é como se vê...
Barulho de tiro?
Não queira conhecer
Lá naquela igreja
Nem consegui me mexer

Quando vi, meu irmão me puxou
E eu fui pro chão
Ele disse: “segure a minha mão”
Depois...
Afirmou que me salvou

Até agora não sei
Se foi isso que realmente rolou
Até porque, que diferença isso faz?
Estou no corredor da morte
E é ele que me traz

Lembro que...
Quando o pastor entrou
Sua arma apontou
Já no primeiro disparo
Minha irmã ele matou

Quando levantei
Com todo aquele zumbido
Vi a pastor todo ensanguentado
Meu irmão disse pra eu fugir
E eu desesperado, correndo saí

Agora eu sei
Ele colocou alguém pra me seguir
Por isso é que estou aqui
Contra minha vontade
Pronto pra partir

A tocaia foi feita
Da maneira mais perfeita
Estou imobilizado, fui usado
E agora vem a sentença

Não deu, meus amigos
Perdi foi pro meu irmão
Que nunca se sabe o que realmente faz
O que se sabe, é que como tantos outros,
Impune, mente em paz

...





...


Diabolô foi executado. Seu irmão foi quem entrou no ônibus e voltou pra Curitiba.

Foi um plano que deu certo. Usou de uma manobra pra começar outro negócio, pois só ele sabia que Diabolô vivia escondido em Curitiba. 

No fim, o pastor matou sua irmã e ele matou o pastor, pois sabia que aquele homem apareceria pra saber do seu filho; tinha esperança, pois de tantas vezes que iludiu outras pessoas, acabou condenado por acreditar na sua própria ilusão.  

No meio de tudo isso estava Diabolô, que guiado por traumas e ódio, buscou seu fim. Sua escolha beneficiou aquele que já planejava daquela cidade sumir.

Seu irmão tirou proveito de toda uma situação e ainda por cima colocou outro corpo, como se fosse o dele, naquele terrível cenário.

...











Dionísio e ‘PF’ escutam a música “Canção para esquecer”, da banda Inocentes, que está no álbum “Subterrâneos”, lançado em 1994. Diabolô tinha essa gravação em CD.

O casal manteve a conexão com o falecido amigo através das músicas. Eles nunca souberam o que realmente aconteceu.

Quando passam por onde antes era o bar do amigo, encontram uma pequena igreja comandada pelo irmão do falecido.

...

O cunhado do Diabolô provavelmente irá se eleger vereador e terá uma carreira política promissora.


Conto originalmente publicado no site Terra Sem Males