sábado, 24 de março de 2012

A iluminada história do capitalista fusca nazi hippie

FINAL

- Oi pai! Tudo bem? Você não acha que já está na hora de sair desse quarto um pouco?

Minha filha entra em meu quarto, pega minha mão e conversa comigo. Confesso que estou mais disposto hoje. Mesmo em estado terminal, como me defino atualmente, tenho vontade de levantar e caminhar pela minha propriedade. 

- Pai! Eu não entendo. O que houve contigo? Depois que voltamos do nosso passeio você nunca mais foi o mesmo. Não vejo você comer, nem tomar café, nem contar suas histórias pra mim! O que aconteceu? Fale comigo?
- Minha filha! Olhe pra mim... estou no fim da minha jornada por aqui. Cada dia penso mais em sua mãe. No meu passado. Acho que já estão clamando por mim em outro lugar...
- Não pai... você ainda é cheio de vida. Até esses dias nós brincávamos, falávamos bobagens... e de um dia pro outro você mudou!
- Não mudei minha filha. É que chega um momento em nossas vidas que devemos acertar as contas com o passado. Minha hora está chegando...
- Que contas pai! Que contas são essas? O que você fez?
- Minha filha! Se você soubesse... mas não há tempo pra lamentações.
- Olha só pai... não conte a ninguém  o que eu vou fazer... mas trouxe aqui um remedinho pra nós!
- Pra nós?
- Sim pai... consegui com uma amiga enfermeira. É um opiáceo. Derivado do ópio. Antidepressivo. Vamos tomar pai?
- Por que está fazendo isso minha filha?
- Pai... quantas histórias malucas eu já vi saírem dessa boca. Quantos causos já saíram dessa sua cabecinha. Quanta saudade você sempre me disse que tem de um LSD! Ah pai... trouxe isso porque achei que você iria gostar... e também porque acho que precisa tomar um antidepressivo.
- Você é danadinha minha filha (ela sorriu e abaixou a cabeça pra mim em sinal de respeito). Claro que eu quero. Daria tudo por um LSD... mas já que você trouxe um derivado do ópio... acho que é melhor não é? (sorri). Essas soluções modernas pros nossos problemas...
- Pai! Fazia tempo que não te via sorrir. Vou lá embaixo buscar duas cervejas pra tomarmos com o remédio. Já volto.

...

Quando chegamos ao Brasil, Louie e eu viajamos por diversas regiões. De norte a sul deste país, num período de ditadura. Porém, como em qualquer país em que os militares mandavam, nós tínhamos livre acesso. Éramos investidores estrangeiros em terras nacionais, com muitos dólares no bolso.

Nosso ramo de negócio foi indicado por Louie. Sua visão futurista nos guiava. Em pouco tempo empreendemos alguns postos de combustível pra administrar. Eram empresas de fachada, mas que garantiam nossa legalidade no Brasil. Após um período de estabilização comercial, esse negócio também nos rendeu bons frutos.

Eu e Louie passamos a ter o mais fiel dos amigos num mundo de abertura econômica, o dinheiro. E o Brasil mostrou-se um grande país pra quem quer gastar, principalmente porque as autoridades nos tratavam como se fizéssemos parte da nobreza imperial.

Já instalados em Curitiba, passei a chamar Louie de Luz, porque ela foi a luz no fim do meu túnel. Eu me apeguei tanto a esse amor que me tornei um homem perigoso. Tratava-a como minha propriedade e talvez esse tenha sido meu grande erro.

Era comum discussão:

- Você acha que sou sua propriedade? Seu hippie de merda – dizia Luz, totalmente descontrolada emocionalmente.
- Somos parceiros, marido e mulher, então... sim... eu acho que você é minha propriedade.
- Ora ora... quem diria. Pra quem tinha ‘A propriedade é um roubo’ do Proudhon embaixo do braço, me parece que você virou um baita de um traidor do que acreditava.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
- É claro que tem... eu tirei você daquela merda de vida. Eu trouxe você pra esse paraíso. E agora! Por que você não desfruta dele também?
- Eu desfruto.
- Desfruta me policiando. Quem antes se achava um anarquista, agora está mais pra um militarzinho de merda.
- Cale essa boca Luz!
- Não sou sua mulher. Não sou sua propriedade. Não me confunda com uma coisa material qualquer. Não dependo de você. Aliás, nunca dependi. Ainda quero o seu bem, podemos viver juntos... por que não? Não era assim também na sua comunidade. Sexo livre, drogas, putaria. O que mudou? Qual a diferença? Apenas mudamos de país, mais continuamos com nossos velhos hábitos! Ou vai me dizer que você só consegue viver comigo... só comigo...
- Você está descontrolada...

Realmente Luz estava certa. Eu havia mudado. Eu me tornara um cara conservador, preocupado com os negócios. Eu policiava Luz. Eu reprovava as festas em nossa casa. Eu não deixava que outros homens se aproximassem dela. Eu era o traficante que também consumia. Eu... eu...

Não conseguia mais aceitar orgias em nossa casa. Matei muitos dos que dormiram com minha mulher embaixo do meu nariz. Ela fazia questão de mostrar que nunca foi propriedade minha. E realmente não foi. Eu mudei. Eu virei o que o velho Vincent havia vislumbrado. Um pote de ouro idiota que se preocupa com sua propriedade. Uma pessoa rancorosa que não podia ser contrariada. Um imperador que se impõe através do medo. Tudo isso porque o dinheiro sempre esteve ao meu lado, sempre foi meu melhor amigo aqui no Brasil.

Assim como uma economia imperial, protegi embaixo de minhas asas o que achava ser o mais importante pra mim. Usei outras ferramentas imperiais na implantação e expansão dos meus interesses, mas tudo isso em outros territórios. Simples ações de expansão do meu poder. Isso lembra as implantações das multinacionais, nos dias de hoje.

Aos poucos os postos de combustíveis passaram a ter meus ‘laranjas’ no controle. Aos poucos Luz se distanciou. Virou uma transgressora. Estava deslumbrada com o Brasil. Desfrutou disso. Mesmo após ter dito nossa filha. Mesmo após ter tido nosso filho. Ela era o braço descontrolado do nosso império.

Eu já havia criado uma rede de contatos independente dela. E meu amigo oculto voltou, já que ela deixara de me dar à devida atenção. Eu sabia que devia tudo a ela, mas não suportava a indiferença. “Eu sou o império agora!”. Quem estava no trono? Quem está no poder? Só eu... sozinho. 

...

Minha filha volta com duas cervejas.

- Tome aqui pai. Vamos nos divertir antes que você me deixe sozinha!

Tomamos o remédio.

- Olha só... vai demorar uns minutos pra fazer efeito. Preciso salvar uns arquivos no meu computador, coisas de trabalho. Troque de roupa, daqui a pouco volto pra darmos uma caminhada em nossa propriedade. Tá bom? – consenti com a cabeça.

...

- Luz! Acorde! – ela se mexia contrariada, recém havia chegado de uma festa.

Vi que seu estado era deplorável. “Uma presa fácil pra nós meu amigo!”. Eu sentia, depois de anos, a velha euforia da floresta. Meu sangue fervia, porém sabia que se fizesse algo teria que ser em silêncio, afinal havia duas crianças em casa – meus filhos.

Luz não era viciada em drogas, apesar de consumir em ocasiões especiais. Ela estava muito drogue da bebida. Sabia que além de enfrentar meu coração, estava enfrentando a pessoa mais visionária que passou pela minha vida. “Não quero que ela sofra!” – “Tudo bem... vamos fazer de um jeito que ela não sinta dor”. 

Fui até minhas coisas e peguei uma quantidade de cocaína suficiente pra matar um cavalo. “Está na hora de dizer adeus Luz!”. Preparei tudo. Com lágrimas e luvas, segurei seu braço e injetei a droga. Depois a coloquei no pé da cama, ao lado da seringa, colher, isqueiro e garrote. Não há possibilidade de sorte. Se ela fosse uma viciada, morreria igual. 

Deitei no meu lado da cama. Dormi o sono dos deuses. Acordei com minha filha gritando. O meu menino não soube da situação. A polícia já estava comprada. Talvez esse fora meu maior gasto desde quando entrei no Brasil.

A propriedade é um roubo! Roube minha propriedade! Amor e ódio. Tudo junto em mim. Luz me deixou quando entramos no Brasil. Uma mulher como ela não é de ninguém. Ela foi a grande imperadora da minha vida. Ensinou-me a ser o império. Eu criei minha forma de comandar e infelizmente ela tornou-se uma ameaça. E ameaças ao meu império morrem...

...

- Eu sou o império! – digo isso em frente ao espelho.

Saio do banheiro após escovar os dentes e lavar a cara. O dia está lindo! Quente e ensolarado. Olho pro meu fusca, ele brilha! Ainda mais com esse ópio na cabeça. “Eu ainda sou o império” – repito isso o tempo todo. Lembro-me do passado traiçoeiro e de todos os meios que utilizei pra chegar até aqui... “sim... eu sou o império”.

Está na hora de colocar essa camisa florida, essa bermuda branca e esse chinelo de dedo. Está na hora de colocar meu ‘cata ovo’ de pesca e esses óculos escuros. Está na hora de sair. Pareço morrer, mas meu império já percorreu da China ao Canadá. Burlou ideologias, traiu movimentos e enlatou a mente das pessoas.

Hoje meus passos não estão mais lentos, apenas acompanhamos as coisas que estão mais rápidas. O velho mundo e os EUA clamam pela minha readequação ao mundo dos emergentes. Estou velho, mas ainda procuram-me. Muito sangue será derramado enquanto o dinheiro for meu melhor amigo. 

...

Minha filha entra no quarto:

- Nossaaaa! Que visual é esse pai?
- Que é isso minha filha, resolvi apenas dar um pouco de vida nesse corpo velho.

Ela com um sorriso largo no rosto pegou meu braço e fomos, como se fossemos um casal, andar pela minha propriedade!

- Pai... está melhor?
- Sim... estou melhor.
- Esse negócio me deixou bem eufórica... você também?
- Sim...

Enquanto descíamos as escadas da minha casa, olhei pra minha filha. “Como que pode... essa mulher é uma mistura da Luz com minha antiga personalidade” – penso comigo. Logo em seguida meu amigo fala baixinho no meu ouvido: “Acho que antes de morrer poderíamos fazer uma festinha com essa gostosinha!” – então abro um pequeno sorriso ao olhar pra ela.

- O que está olhando pai!
- Nada... apenas um sensação de felicidade...

Na sala avisto meu filho. “Esse moleque de merda” – diz meu amigo. Imagino-o pendurado numa corda no meio da sala. “Isso seria lindo!”...

- Olha quem saiu do quarto! – brincou minha filha ao falar com seu irmão.  
- Grande coisa!
- Credo... nosso pai ficou esse tempão no quarto... hoje ele saiu, vamos dar uma volta conosco.
- Eu não... to jogando... me deixem em paz... – meu filho está vidrado em algum game no seu computador. Na verdade não sei o que tanto ele faz em frente a essa máquina. “Ele pode estar tramando a nossa morte!” – confidencia meu amigo.
- Vamos pro jardim pai?
- Sim.
- Que dia lindo! Que sensação boa!
- Sim... me sinto muito bem.

Então eu e minha filha caminhamos pelo jardim até chegar aos bancos. Muitas flores... não saberia dizer seus nomes... muitas borboletas, abelhas e pássaros... me sinto muito bem... relaxo meu corpo no banco como se alongasse meus velhos músculos.

- Pai... lembrei! Vou pegar a máquina fotográfica. Vamos tirar uma fotos...
- Claro minha filha... – então ela foi.

“Agora que estamos nós dois aqui, posso te dizer uma coisa... sua filha está no ponto” – “Sim... está! Não lembrava que havia construído um bosque aqui na minha própria casa!” – “Sim!” – “Isso muito me interessa!”. Dou um leve sorriso.  

Olho pro lado e lá está meu filho a me observar. Ele percebeu que eu falava com alguém. Seu olhar é de ódio. “Calma menino, daqui uns dias você estará pendurado numa corda” – então grito pra ele: “Eu te amo meu filho!” – ele vem em minha direção junto a sua irmã, pra tirarmos alguns retratos. 

Eles chegam até mim:

- Vamos lá pai... sorria! – diz minha filha.

Sim... esse é meu retrato, sempre a sorrir. Esse é o sistema no qual faço parte. Não existe fim... não existe limite. Nunca descerei do trono.

Sinto meu sangue ferver. “Meu fusca deve estar todo reluzente!” – penso comigo. “Podemos estar velhos meu amigo. Mas só de olhar pros seus filhos, percebo que ainda temos motivos pra viver”.

Então olho pra eles e abro um sorriso:

- Eu amo vocês.

Abraço-os pela última vez.