FINAL
- Oi pai!
Tudo bem? Você não acha que já está na hora de sair desse quarto um pouco?
Minha filha
entra em meu quarto, pega minha mão e conversa comigo. Confesso que estou mais
disposto hoje. Mesmo em estado terminal, como me defino atualmente, tenho
vontade de levantar e caminhar pela minha propriedade.
- Pai! Eu
não entendo. O que houve contigo? Depois que voltamos do nosso passeio você
nunca mais foi o mesmo. Não vejo você comer, nem tomar café, nem contar suas
histórias pra mim! O que aconteceu? Fale comigo?
- Minha
filha! Olhe pra mim... estou no fim da minha jornada por aqui. Cada dia penso
mais em sua mãe. No meu passado. Acho que já estão clamando por mim em outro
lugar...
- Não pai...
você ainda é cheio de vida. Até esses dias nós brincávamos, falávamos
bobagens... e de um dia pro outro você mudou!
- Não mudei
minha filha. É que chega um momento em nossas vidas que devemos acertar as
contas com o passado. Minha hora está chegando...
- Que contas
pai! Que contas são essas? O que você fez?
- Minha
filha! Se você soubesse... mas não há tempo pra lamentações.
- Olha só
pai... não conte a ninguém o que eu vou
fazer... mas trouxe aqui um remedinho pra nós!
- Pra nós?
- Sim pai...
consegui com uma amiga enfermeira. É um opiáceo. Derivado do ópio.
Antidepressivo. Vamos tomar pai?
- Por que
está fazendo isso minha filha?
- Pai...
quantas histórias malucas eu já vi saírem dessa boca. Quantos causos já saíram
dessa sua cabecinha. Quanta saudade você sempre me disse que tem de um LSD! Ah
pai... trouxe isso porque achei que você iria gostar... e também porque acho
que precisa tomar um antidepressivo.
- Você é
danadinha minha filha (ela sorriu e abaixou a cabeça pra mim em sinal de
respeito). Claro que eu quero. Daria tudo por um LSD... mas já que você trouxe
um derivado do ópio... acho que é melhor não é? (sorri). Essas soluções
modernas pros nossos problemas...
- Pai! Fazia
tempo que não te via sorrir. Vou lá embaixo buscar duas cervejas pra tomarmos
com o remédio. Já volto.
...
Quando
chegamos ao Brasil, Louie e eu viajamos por diversas regiões. De norte a sul
deste país, num período de ditadura. Porém, como em qualquer país em que os
militares mandavam, nós tínhamos livre acesso. Éramos investidores estrangeiros
em terras nacionais, com muitos dólares no bolso.
Nosso ramo
de negócio foi indicado por Louie. Sua visão futurista nos guiava. Em pouco
tempo empreendemos alguns postos de combustível pra administrar. Eram empresas
de fachada, mas que garantiam nossa legalidade no Brasil. Após um período de
estabilização comercial, esse negócio também nos rendeu bons frutos.
Eu e Louie
passamos a ter o mais fiel dos amigos num mundo de abertura econômica, o
dinheiro. E o Brasil mostrou-se um grande país pra quem quer gastar,
principalmente porque as autoridades nos tratavam como se fizéssemos parte da
nobreza imperial.
Já
instalados em Curitiba, passei a chamar Louie de Luz, porque ela foi a luz no
fim do meu túnel. Eu me apeguei tanto a esse amor que me tornei um homem
perigoso. Tratava-a como minha propriedade e talvez esse tenha sido meu grande
erro.
Era comum discussão:
- Você acha
que sou sua propriedade? Seu hippie de merda – dizia Luz, totalmente
descontrolada emocionalmente.
- Somos
parceiros, marido e mulher, então... sim... eu acho que você é minha
propriedade.
- Ora ora...
quem diria. Pra quem tinha ‘A propriedade é um roubo’ do Proudhon embaixo do
braço, me parece que você virou um baita de um traidor do que acreditava.
- Uma coisa
não tem nada a ver com a outra.
- É claro
que tem... eu tirei você daquela merda de vida. Eu trouxe você pra esse
paraíso. E agora! Por que você não desfruta dele também?
- Eu
desfruto.
- Desfruta
me policiando. Quem antes se achava um anarquista, agora está mais pra um
militarzinho de merda.
- Cale essa
boca Luz!
- Não sou
sua mulher. Não sou sua propriedade. Não me confunda com uma coisa material
qualquer. Não dependo de você. Aliás, nunca dependi. Ainda quero o seu bem,
podemos viver juntos... por que não? Não era assim também na sua comunidade.
Sexo livre, drogas, putaria. O que mudou? Qual a diferença? Apenas mudamos de
país, mais continuamos com nossos velhos hábitos! Ou vai me dizer que você só
consegue viver comigo... só comigo...
- Você está
descontrolada...
Realmente
Luz estava certa. Eu havia mudado. Eu me tornara um cara conservador,
preocupado com os negócios. Eu policiava Luz. Eu reprovava as festas em nossa
casa. Eu não deixava que outros homens se aproximassem dela. Eu era o
traficante que também consumia. Eu... eu...
Não
conseguia mais aceitar orgias em nossa casa. Matei muitos dos que dormiram com
minha mulher embaixo do meu nariz. Ela fazia questão de mostrar que nunca foi
propriedade minha. E realmente não foi. Eu mudei. Eu virei o que o velho
Vincent havia vislumbrado. Um pote de ouro idiota que se preocupa com sua
propriedade. Uma pessoa rancorosa que não podia ser contrariada. Um imperador
que se impõe através do medo. Tudo isso porque o dinheiro sempre esteve ao meu
lado, sempre foi meu melhor amigo aqui no Brasil.
Assim como
uma economia imperial, protegi embaixo de minhas asas o que achava ser o mais
importante pra mim. Usei outras ferramentas imperiais na implantação e expansão
dos meus interesses, mas tudo isso em outros territórios. Simples ações de
expansão do meu poder. Isso lembra as implantações das multinacionais, nos dias
de hoje.
Aos poucos
os postos de combustíveis passaram a ter meus ‘laranjas’ no controle. Aos
poucos Luz se distanciou. Virou uma transgressora. Estava deslumbrada com o
Brasil. Desfrutou disso. Mesmo após ter dito nossa filha. Mesmo após ter tido
nosso filho. Ela era o braço descontrolado do nosso império.
Eu já havia
criado uma rede de contatos independente dela. E meu amigo oculto voltou, já
que ela deixara de me dar à devida atenção. Eu sabia que devia tudo a ela, mas
não suportava a indiferença. “Eu sou o império agora!”. Quem estava no trono?
Quem está no poder? Só eu... sozinho.
...
Minha filha
volta com duas cervejas.
- Tome aqui
pai. Vamos nos divertir antes que você me deixe sozinha!
Tomamos o
remédio.
- Olha só...
vai demorar uns minutos pra fazer efeito. Preciso salvar uns arquivos no meu
computador, coisas de trabalho. Troque de roupa, daqui a pouco volto pra darmos
uma caminhada em nossa propriedade. Tá bom? – consenti com a cabeça.
...
- Luz!
Acorde! – ela se mexia contrariada, recém havia chegado de uma festa.
Vi que seu
estado era deplorável. “Uma presa fácil pra nós meu amigo!”. Eu sentia, depois
de anos, a velha euforia da floresta. Meu sangue fervia, porém sabia que se
fizesse algo teria que ser em silêncio, afinal havia duas crianças em casa –
meus filhos.
Luz não era
viciada em drogas, apesar de consumir em ocasiões especiais. Ela estava muito
drogue da bebida. Sabia que além de enfrentar meu coração, estava enfrentando a
pessoa mais visionária que passou pela minha vida. “Não quero que ela sofra!” –
“Tudo bem... vamos fazer de um jeito que ela não sinta dor”.
Fui até
minhas coisas e peguei uma quantidade de cocaína suficiente pra matar um
cavalo. “Está na hora de dizer adeus Luz!”. Preparei tudo. Com lágrimas e
luvas, segurei seu braço e injetei a droga. Depois a coloquei no pé da cama, ao
lado da seringa, colher, isqueiro e garrote. Não há possibilidade de sorte. Se
ela fosse uma viciada, morreria igual.
Deitei no
meu lado da cama. Dormi o sono dos deuses. Acordei com minha filha gritando. O
meu menino não soube da situação. A polícia já estava comprada. Talvez esse
fora meu maior gasto desde quando entrei no Brasil.
A
propriedade é um roubo! Roube minha propriedade! Amor e ódio. Tudo junto em
mim. Luz me deixou quando entramos no Brasil. Uma mulher como ela não é de
ninguém. Ela foi a grande imperadora da minha vida. Ensinou-me a ser o império.
Eu criei minha forma de comandar e infelizmente ela tornou-se uma ameaça. E
ameaças ao meu império morrem...
...
- Eu sou o
império! – digo isso em frente ao espelho.
Saio do
banheiro após escovar os dentes e lavar a cara. O dia está lindo! Quente e
ensolarado. Olho pro meu fusca, ele brilha! Ainda mais com esse ópio na cabeça.
“Eu ainda sou o império” – repito isso o tempo todo. Lembro-me do passado
traiçoeiro e de todos os meios que utilizei pra chegar até aqui... “sim... eu
sou o império”.
Está na hora
de colocar essa camisa florida, essa bermuda branca e esse chinelo de dedo.
Está na hora de colocar meu ‘cata ovo’ de pesca e esses óculos escuros. Está na
hora de sair. Pareço morrer, mas meu império já percorreu da China ao Canadá.
Burlou ideologias, traiu movimentos e enlatou a mente das pessoas.
Hoje meus
passos não estão mais lentos, apenas acompanhamos as coisas que estão mais
rápidas. O velho mundo e os EUA clamam pela minha readequação ao mundo dos
emergentes. Estou velho, mas ainda procuram-me. Muito sangue será derramado
enquanto o dinheiro for meu melhor amigo.
...
Minha filha
entra no quarto:
- Nossaaaa!
Que visual é esse pai?
- Que é isso
minha filha, resolvi apenas dar um pouco de vida nesse corpo velho.
Ela com um
sorriso largo no rosto pegou meu braço e fomos, como se fossemos um casal,
andar pela minha propriedade!
- Pai...
está melhor?
- Sim...
estou melhor.
- Esse
negócio me deixou bem eufórica... você também?
- Sim...
Enquanto
descíamos as escadas da minha casa, olhei pra minha filha. “Como que pode...
essa mulher é uma mistura da Luz com minha antiga personalidade” – penso
comigo. Logo em seguida meu amigo fala baixinho no meu ouvido: “Acho que antes
de morrer poderíamos fazer uma festinha com essa gostosinha!” – então abro um
pequeno sorriso ao olhar pra ela.
- O que está
olhando pai!
- Nada...
apenas um sensação de felicidade...
Na sala
avisto meu filho. “Esse moleque de merda” – diz meu amigo. Imagino-o pendurado
numa corda no meio da sala. “Isso seria lindo!”...
- Olha quem
saiu do quarto! – brincou minha filha ao falar com seu irmão.
- Grande
coisa!
- Credo...
nosso pai ficou esse tempão no quarto... hoje ele saiu, vamos dar uma volta
conosco.
- Eu não...
to jogando... me deixem em paz... – meu filho está vidrado em algum game no seu
computador. Na verdade não sei o que tanto ele faz em frente a essa máquina.
“Ele pode estar tramando a nossa morte!” – confidencia meu amigo.
- Vamos pro
jardim pai?
- Sim.
- Que dia
lindo! Que sensação boa!
- Sim... me
sinto muito bem.
Então eu e
minha filha caminhamos pelo jardim até chegar aos bancos. Muitas flores... não
saberia dizer seus nomes... muitas borboletas, abelhas e pássaros... me sinto
muito bem... relaxo meu corpo no banco como se alongasse meus velhos músculos.
- Pai...
lembrei! Vou pegar a máquina fotográfica. Vamos tirar uma fotos...
- Claro
minha filha... – então ela foi.
“Agora que
estamos nós dois aqui, posso te dizer uma coisa... sua filha está no ponto” –
“Sim... está! Não lembrava que havia construído um bosque aqui na minha
própria casa!” – “Sim!” – “Isso muito me interessa!”. Dou um leve sorriso.
Olho pro
lado e lá está meu filho a me observar. Ele percebeu que eu falava com alguém.
Seu olhar é de ódio. “Calma menino, daqui uns dias você estará pendurado numa
corda” – então grito pra ele: “Eu te amo meu filho!” – ele vem em minha direção
junto a sua irmã, pra tirarmos alguns retratos.
Eles chegam
até mim:
- Vamos lá
pai... sorria! – diz minha filha.
Sim... esse
é meu retrato, sempre a sorrir. Esse é o sistema no qual faço parte. Não existe
fim... não existe limite. Nunca descerei do trono.
Sinto meu
sangue ferver. “Meu fusca deve estar todo reluzente!” – penso comigo. “Podemos
estar velhos meu amigo. Mas só de olhar pros seus filhos, percebo que ainda
temos motivos pra viver”.
Então olho
pra eles e abro um sorriso:
- Eu amo
vocês.
Abraço-os
pela última vez.