segunda-feira, 26 de julho de 2010

Futebol sem tempero, mas o país tem gosto

Capítulo II: Bigode chega e Cat Blake dá o ar da graça



A Copa nem começou, o Brasileirão tá quase na metade e, assim como o torneio de futebol, ano que vem tem eleição pra presidente. Agora meu bar se resume e discussão sobre futebol e política, o que eu acho ótimo. Não passo mais jogos, mesmo com todo mundo enchendo meu saco pra botar um telão, prefiro deixar a música rolar e manter meu varal de textos literários.

Eu e Tim iniciamos esse projeto de varal literário depois da morte de Saramago. Meu amigo convenceu-me que já era hora de deixar a favela ‘cult’. No início disse que não daria em nada, mas até agora o resultado é surpreendente. Vem cada pessoa estranha por aqui. Porém, mesmo com contos e crônicas, poesias e escritores do mundo todo, nada se compara ao cotidiano de alguns fregueses que tenho.

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Existem pessoas que são diferenciadas, que não conseguimos esquecer. Uma delas é Bigode. Um senhor de quase 70 anos, taxista. O que importa nisso tudo é que Bigode sempre para aqui no meu bar, após suas corridas, pra tomar sua branquinha e levar um papo com as pessoas que por aqui ficam.

Não tem muito critério pra Bigode chegar aqui, também não tem pra ir embora. De vez em quando vai pra casa cedo, às vezes tarde e às vezes muito cedo, se é que vocês me entendem. O Tião e o Tim tem contato estreito com ele. Já cheguei a pensar que são parceiros de negócio, mas como não tenho certeza, acho melhor apenas ficar no campo das suposições.

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Tião e Tim jogavam sua sinuca por aqui, não é comum eles fazerem isso, mas disseram que estão no aguardo do Bigode. Quando meu velho amigo chegou, olhou pra todo o bar, deu sua famosa piscada pros dois. Sentou a minha frente e pediu uma dose de 51.

Enquanto os dois jogavam, bola vai bola vem, Bigode fazia sinal negativo com a cabeça, reclamava da jogada e falava qual seria o melhor modo de fazer a bola cair na caçapa.

“Porra Bigode, não fode, tá enchendo o saco já!” – disse Tim, o alvo principal das críticas do velho. “Mas tumbém, joga tudo errado esse malacabado. Vai vendo, não sabe nem pega no taco!” – e abriu seu primeiro sorriso. Sua boca tinha uns dentes de ouro, volte e meia Tim zoava desse estilo peculiar. “Vo arrancar esses dentes aí e vender pros malandro. Deve tê uma dúzia de vagabundo querendo um ouro por aí” – e Tião deu uma olhada, como se ele quisesse.

Apesar das brincadeiras, quando Tim dava uma dura em alguém, normalmente esse abaixava a bola, até porque a fama da cara não é das melhores. Porém com Bigode a putaria era generalizada. “Aí Zaca, dá mais uma dose pro Bigode. Aproveita e bota uma pra mim!” – disse Tião, que tomava cerveja e iria acompanhar seu amigo na branquinha.

Bigode olhava eu encher os copos: “Pô Zaca, tá ‘icolomizando na dose ein?” – “Qual é véio, vai querer apavorar comigo também?” – Bigode deu uma coçada na sua careca, colocou seu boné velho de volta e tirou um palito pra mascar. Um legítimo malandro, com sua camisa aberta até a metade, por fora da bermuda jeans e uma espécie de alpargata velha no pé. Seu bigode está branco como o resto dos cabelos que resta.

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Após um silencio entra no bar Cat Blake, uma mulher misteriosa que eu não sei, sinceramente, o que faz. Ela é íntima do Bigode e faz negócios do tipo usuária em busca do tesouro com Tim. Pelo fato de ser mulher, e das boas, tem certo benefício. São poucos que tiram algo dos irmãos.

Ela senta e logo Bigode solta: “Como dizia o filousofo Bruno: ‘quem nunca saiu na mão com sua mulé’” – e olhou pra Cat Blake com um sorriso do tipo ‘Boca de Ouro’ (clássico filme nacional – derivado da peça teatral de Nelson Rodrigues). Na hora Tião estava dando um trago na sua branquinha e cuspiu pra frente. Todos riram. Cat Blake foi em direção ao Bigode e disse: “Bate gostoso seu velho safado!” – dando risada pegou a mão do Bigode e colocou em seus seios. Depois deu um beijo na testa do coroa e pediu uma cerveja.

Aí ela olhou pro Bigode e disse: “Você acha mesmo que o Bruno foi o culpado?” – “Porra! Craro! Craro! Cê tem dívida?” – “O que?” – disse Cat Blake – “Ele quis dizer dúvida” – interrompi – “Dúvida, dúvida... foi uque eu disse caraio” – olhou pra mim zangado. “Tá tá... eu tenho dúvida sim. Ué... não tinha digital... não tinha nada do Bruno!” – “Craro que num tem digital... golero usa luva sua burra” – e o véio abriu o sorriso. Aliás, todos ali no bar.

Aí Tião interrompeu e disse: “porra... o que teve de piadinha sobre esse Bruno. Lembram daquela: Bruno levou Eliza pra dar um rolê, aí o lugar estava escuro, então ela disse – ‘aí Bruno, estou com medo’ – aí ele largou – ‘e eu que vou voltar sozinho’” – e caiu na risada.

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Agora só estávamos nós no bar. De repente o pedido de Cat Blake.

“Aí... aquele CD ali no canto do rádio é do Exploited?” – “Sim é” – respondi. “Já que lembramos da merda toda do Bruno, quero ouvir uma música” – entendi e coloquei “Sex and Violence” do primeiro álbum do Exploited - “Punks not Dead”.

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Nas minhas sinceras conclusões, não sei quem é Cat Blake. Já desconfiei que fosse polícia disfarçada, mas até julgar isso precisaria de algo relevante, então é melhor pensar com meus botões, afinal, apenas sirvo meus fregueses. Ela é atraente, todos da Vila gostariam de dar ‘uns pega’ nela, mas até hoje não vi ela com alguém.

Tim me disse que nunca pegou, Tião eu não vi nem sequer trocar ideia. O Bigode sempre desconversa. Então eu a sirvo e só fico no olhar. Ela é uma mulher culta, é de se estranhar que passa tento tempo na favela. “Bigode, você só toma pinga né. Sempre quis saber por quê?” – “Olha Cats Brake, é uma história meio instranha sabe!”. Só a maneira como o velho chamou sua amiga – Cats Brake – já tirou Tim do sério. “Porra véio, fala tudo zoado e ainda não toma cerveja? Tomá no cu porra”.

“Num tomo cerveja purque me deixa meio viado” – “Qual é Bigode?” – interrompeu Tião. “Carma nego, vou expricar o negócio. É que pra mim aconteceu uma coisa no banhero que parei de beber essa merda aí” – “O que aconteceu?” – perguntou Cat Blake. “A última vez que bebi cerveja não foi bom não!” – e se aproximou do Tim pra falar. Estava Cat Blake a minha frente, Tim e Bigode um ao lado do outro, afastados do balcão, e Tião no canto do bar.

Bigode continua sua história...

“Intão eu bebi pra caraio essa porra de cerveja, me deu uma mijadera, vixi! Eu já tava pra lá de doido, aí fui mijá. Bom... quando entrei no banhero – aqui Zaca, aqui no seu banhero – olhei pra privada e ela fez assim...” – e com as mãos e os braços mostrou que a privada encolheu, o buraco diminuiu. Continuou: “Aí eu fiz assim com o zóio pra ver alguma coisa” – e fechou um olho e abriu mais o outro. “Mas num adiantou. Aí fiz assim!” – e dobrou um pouco os joelhos e deixou os dois olhos entreabertos. “Tumbém num adiantou. Porra véio, porra! Agora fudeu, pensei cumigo né! Aí me virei e fui indo de ré na privada” – e fez como se tivesse uma privada no meio do bar. Neste momento estava todo mundo dando risada do Bigode. “Intão eu sentei e mijei” – e caiu na risada. “Daí dispois que eu mijei, levantei e falei comigo: porra... acoquei! Acoquei? (berrando) Essa porra de cerveja é bebida di viado? Tá me deixando meio viado essa porra! Aí parei di beber essa merda!” – e todo mundo estava se mijando de rir.

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O clima continuava ótimo, depois desta história que aconteceu no meu bar e eu nem imaginava. Tento lembrar o dia que o Bigode tomou cerveja, mas deve fazer muito tempo, porque realmente o negócio dele é pinga.

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Depois de um tempo, fiquei curioso pra saber o motivo dessa reunião. Até então esses fregueses não bebiam juntos por aqui.

Primeiro porque Tim não bebe mais, fica no seu rolê, a mando de Tião; que por sua vez frequenta meu bar em horários mais usuais, vamos assim dizer. Bigode é normal estar por aqui e Cat Blake é um mistério.

O que eu não sei é o motivo dos quatro se reunirem.

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Porém o assunto entrou em pauta depois de algum tempo.

Tião tomou a palavra: “então Bigode, tá na hora de resolver a presepada que rolou lá na avenida semana passada né. E aí, como vai ser?” (ficou um silêncio. Eu não entendi a pergunta, Tim encarou Bigode e Cat Blake) – “Intão, o negócio é o seguinte: conversei com essa marvada aqui” – e apontou pra Cat Blake – “resorvemos tentar pagar você, mas num temos condições de pagar a vista. Porra! A situação tá foda!”.

Depois disso soube o motivo da reunião: Bigode foi buscar Cat Blake numa festa e quando a pegou, na volta, foi surpreendido por um ‘preiboi’, como ele mesmo diz. O lance é que a Cat Blake estava deitada no banco de trás, tentava dormir, estava doidona, segundo o taxista. Então o assaltante não a viu e parou Bigode pelo caminho. “O que eu não entendo seu véio burro, é por que você parou a porra do carro?” – disse Tião no meio da ‘estória’ ou história.

Com certeza Bigode estava bêbado na hora pra ter parado. Disse que assaltante entrou no carro e já deu voz de assalto. Aí ele deu uma de herói: “A hora que o malandro disse que era um assalto e puxô o revorve, já meti a mão na arma dele, fui mais rápido que o mardito. Ele esbugaiou o zóio de surpresa, mas eu não amarelei. Aí eu disse pro safado atirá. E num é que o fia da puta atirô, minha sorte é que a arma tava apontava pra baixo” – “Foi aí que eu acordei!” – emendou Cat Blake.

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A sequencia da ‘estória’ ou história é que Cat Blake foi pra cima do assaltante, o pau pegou dentro do táxi. Bigode perdeu o controle e foram parar dentro de um restaurante de esquina, com uma porta de vidro, numa avenida movimentada da cidade, em plena madrugada.

A coisa mais incrível de tudo isso é que bem na hora passava por lá Tim e Tião de carro. Quando a polícia chegou os dois irmãos já estavam lá.

“Se a gente não chega, o bicho ia pegar pra vocês!” – disse Tim pro Bigode. “Vixi! Si ia”.

Bom, o fato é que a situação foi tragicômica. Tião arcou com a bagunça, sua condição era o acerto uma semana depois, além de negociar com a polícia e mandar prender o assaltante.

Antes Tim espancou o cara no meio da rua.

“A polícia recebeu muito bem por aquilo” – disse Tião. Eles tiraram o carro do Bigode do restaurante. Tim e Bigode foram no táxi e Cat Blake e Tião no outro carro.

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“Olha isso Zaca” – e Tião me mostrou as fotos que tirou com o celular. As imagens eram de um táxi com metade pra dentro de um restaurante. Tinha vidro pra todo lado, o Bigode estava com uma cara de chapado mesmo, a Cat Blake muito mais. Tião também captou umas imagens de Tim dando umas porradas no malaco no meio da rua. Algo bizarro.

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“Só não entendi como vocês estavam no local?” – perguntei pro Tião. “Porra Zaca, sei lá mano, estávamos dando um rolê, eu e o Tim, aí vimos àquela cena bizarra do táxi dentro de um restaurante, com fumaça pro alto. Paramos pra ver, era o Bigode, a Cat e o assaltante”.

“Cat?” – Tião a chama com intimidade. Estranho! – penso comigo.

Coincidências acontecem realmente, mas a história estava estranha. Meus amigos estavam diferentes. Bigode com a cabeça baixa. “Num tenho como pagá pra Tião” – disse ao olhar pra mim. “Deu muita coisa?” – perguntei pra Tião. “Tivemos que comprar os homi, sabe como é”.

“O maió probrema é que agora to sem meu táxi! A hora que ele arrumá, os homi vão ficá na minha cola!” – disse Bigode. “Eles também viram nosso carro Tião!” – disse Tim. A conversa de alegre passou a ser trágica. O pior disso tudo é que parecia uma cena de cinema, em que todos armavam pra mim.

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“Então Zaca, você está vendo a nossa situação. Deu esses problemas, sem querer acabamos tendo que desembolsar uma grana e fazer a frente com os homi. Você sabe como é! Eles vão vir na cola, pra sugar. E tem outra, vão botar P2 na área. Vai ficar tenso entende?” – “Entendo! Mas qual é a parada?” – “A parada é a seguinte... vamos colocar um telão aqui nesse bar, gerar movimento, nós arcamos com tudo. Vamos investir nessa espelunca. Mas aí malandro, tem que passar o máximo de jogo possível, inclusive reprisar. Vamos levantar uma grana. Fazer negócio por aqui. Você vai receber o seu, pode ter certeza” – fez uma pausa e me olhou, depois soltou direto – “E então, o que achou da ideia?”.

Pensei com meus botões: "botar a única coisa que eu tenho nesse esquema?". Olhei pra eles e disse: “vai rolar grana?” – eles fizeram sinal de positivo. Aí eu disse: “então vai ser igual o Bruno do Flamengo e o Ronaldo Fenômeno?” – “Como assim?” – disse Tim curioso – “o que não mata engorda!” – e demos umas risadas.

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Pensei comigo. “Então é isso, a vontade de engordar o bolso acaba de me matar”.