quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O COVEIRO

Capítulo I – Eis que inauguro meu cemitério ideal



“Você! Mais um você! Mais um de mim! Mais um de nós! Nós vamos embora. Eu os mando embora. Não há mais amigos pra compartilhar. Não há mais lágrimas. Só mais um você. Só mais um de vocês. Só mais um de nós!”.

"Enxugo as lágrimas. O Neto foi o último. Enterro agora meu último amigo. Que praga é essa que só atinge os pobres? Sei que minha hora está próxima. Sou remanescente. É questão de tempo pra outro assumir meu lugar. Algum pau mandado de merda. Logo vem outro pra cá e ele vem, primeiramente, pra me enterrar".

"Estou cansado de enterrar só pobre. Só meus semelhantes. Estou cansado".

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Cansado de enterrar só pobre o coveiro de uma pequena cidade resolveu mudar seu ritual.

Ele morava num lugar predominantemente agrícola. Cercado por grandes fazendas. Os antigos moradores perderam suas propriedades. Período marcado pela chegada de forasteiros com mais poder bélico, vamos assim dizer.

Com amparo de um sistema vigente, implantaram a “arte de puxar cerca”. E o sangue foi derramado. Os hipócritas no poder inventavam diversas justificativas pra mortes dos pobres. Todas falsas. Muitas famílias foram embora. Muitos inocentes morreram e ainda morrem.

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“Eu não espero mais um minuto que a consciência esfaqueie a alma desses malditos. Eu vou acabar com isso. Neto foi o último. Prefiro não ver mais essas pessoas sendo destruídas dessa forma. Aqui não há justiça. Aqui não há direitos. Há covardes. Há dinheiro. Há poder. Há tudo menos respeito. Ou você entra na dança ou você dança”.

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Na sua cabeça, o coveiro não administra mais a situação.

O sentimento de vingança predomina e talvez seja isso que o mantenha vivo. Que o faça jogar o jogo.

Ele sabe também que sua vingança, se acontecer, precisa ser milimetricamente bem sucedida. Caso contrário, o subterrâneo é seu destino.

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E em mais um dia de trabalho, lá está ele a abrir buracos na terra. Normalmente pra pequenos agricultores, pessoas que o coveiro conhece desde criança.

Pessoas que o viram crescer, pessoas amigas. Ele cansou de enterrar amigo financeiramente fodido igual a ele. Porém, esse era seu ganha pão. Herdou a profissão de coveiro do seu “padrasto”.

Da sua família de origem só sobrou ele. Todos trabalhavam no campo, em pequenas propriedades. Foram mortos.

Sua história é uma mistura de sorte e tragédia. Quando nasceu, por complicação no parto, sua mãe morreu. Seu pai o rejeitou.

Então o coveiro da época o adotou. Era solitário, ajudou a fundar o município. Após alguns anos morreu e o jovem assumiu a função.

Hoje o coveiro lembra os ensinamentos daquele homem que o salvou. O agradece profundamente.

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O contexto era de genocídio da máquina contra pessoas inocentes. Havia na pequena cidade as famílias que chegavam com o aparato do governo. Eram grupos que se organizavam entre si. Todos agiam pressionados pelo topo da pirâmide.

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Agora este coveiro, o mesmo que aceitou enterrar os próprios familiares, estava em dúvida se continuava na profissão que amava.

“Quando levo a carne pro buraco liberto a alma. Mas o que vejo é muita pessoa boa, que só faz o bem, se desintegrar. Agora essas almas injustiçadas se fizeram presente e me mostraram outro caminho. O caminho da justiça. O caminho de Jesus. O caminho do jovem e bravo justiceiro”.

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Decidiu então, diante de sua constante solidão, tornar-se um semeador. Sentiu ferver em suas veias o sentimento de libertar as almas que estão prejudicando o bem comum.

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“São somente as mesmas almas que vagam. As almas da justiça. As almas que se foram aqui e em vida pregaram o bem comum. Um mundo paralelo clama pela chegada de outras almas, as que precisam ser punidas pelo que fizeram quando eram ferramentas humanas. Agora eu preciso peregrinar e semear o cemitério ideal!”.

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Num momento de inspiração, assumiu o compromisso de alimentar a terra somente com a carne dominantemente econômica. Decidiu levar a sete palmos em direção ao núcleo terrestre os semelhantes aos que o mandavam enterrar pessoas de bem. Os que faziam a sociedade acreditar que as vítimas eram o problema.

Após planejar o que fazer, definiu sua estratégia como “o método de punição kamikaze”...

Deitado entre covas vazias o coveiro olhava pro céu estrelado. Abriu os braços como se estivesse crucificado. Encheu as mãos e as fechou, apertando aquela terra vermelha.

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Na noite em que o coveiro sumiu da cidade, morreram o delegado e sua mulher. Também o juiz e seu namorado. Policiais folgados e corrompidos. Também o prefeito e alguns políticos. Ao todo foram dez corpos. Todos pegos de surpresa, pois viviam num estado tão grande de comodidade que nem viram a morte chegar.

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Somente o padre da cidade o ajudou na fuga. Aquele senhor se tornou um missionário por conveniência. Viu uma forma de sobreviver como padre. Mentiu sua identidade e como tinha grande oratória permaneceu como proclamador da palavra do senhor.

Viu na ajuda ao justiceiro divino uma maneira de ser perdoado por tantas mentiras. “Trace seu caminhada para o céu meu filho!” – disse o padre ao coveiro.

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Na ação o coveiro enterrou os corpos na mesma noite. Não teve dificuldades, pois antecipadamente havia deixado as covas prontas.

Então ao desligar do gerador de energia da pequena cidade ele caçou seus alvos. Conhecia cada curva das ruas, cada pedacinho de chão daquele pequeno lugar. Seja no sol, seja na escuridão. Ele conhecia tudo. Durante anos vagou nas sombras sem que ninguém percebesse. Sabia que muitos dos seguranças e policiais da cidade eram nomeados por indicação. Não tinham competência pra proteger nem a si mesmo. E como tudo era calmo por lá, já estavam acomodados.

A caça durou da meia noite até o amanhecer. Quando terminou o serviço, deu tempo pra se lavar e pegar o primeiro ônibus que o tirava daquela terra.

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No seu primeiro cemitério ideal, percebeu a leveza que aquela ação causou na sua alma. A partir daquele dia, seu destino estava traçado: por onde passasse plantaria a semente.