quinta-feira, 1 de julho de 2010

Futebol sem tempero, mas o país tem gosto

Capítulo I: Tião, Tim e Zaca


Meu nome é Zacarias, mais conhecido como ‘Zaca’. Tenho meu boteco particular na Vila do Cramunhão. Além desse negócio, tenho outro trabalho com dois amigos: Tião e Timóteo. Eles são irmãos de sangue, duas peças raras nesse mundo. Infelizmente se envolveram com a criminalidade, mas, assim como eu, não tiveram muitas oportunidades.

Tião já está puto da cara, Timóteo ainda não chegou. “Porra! Quando será que o Tim vai chegar na hora certa ein mano?” – perguntou pra mim, em frente ao meu balcão. “Sei lá, mas só não quero que quebrem meu bar como fizeram quando assistiram àquele fatídico jogo!” – “Ah! Qual é Zaca, tá me zoando, também não é tão foda assim né!” – “Pra vocês não! Não são vocês que perdem os fregueses, não são vocês que precisam comprar cadeiras novas, copos novos... e por aí vai né ‘amigão’” – “Mas isso aconteceu na última Copa do Mundo, faz uns dez anos já!" - "Uns sete anos" - "E eu também tive prejuízo pô... com hospital. E tive que internar o Tim daquela vez. Então também tive muitos gastos também tá ligado?”.

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Tião e Tim assistiam jogos juntos em todas as ocasiões. Normalmente era meu bar o palco das alegrias e tristezas desses caras. O problema é que uma vez passaram dos limites, quebraram todo bar quando o Brasil perdeu pra França em 2006. Depois disso eles passaram a se policiar, até porque quase foram presos. O resultado foi um grande prejuízo com hospital e clínica de recuperação.

Tião continua a traficar seus entorpecentes, já Tim parou de consumi-los, mas trabalha com o irmão. Quando o Brasil perdeu aquele jogo contra a França eles estavam tão surtados que botaram todo mundo pra correr. Tim deu tanta porrada num funcionário da quadrilha que o deixou 'desconfigurado'. “Eu lembro que o Tim tinha consumido tanta porcaria naquele jogo, que saiu do corpo. Hoje dou graças a deus que ele está limpo!” – disse Tião pra mim, eu consenti.

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Tião é mais velho, não muito, três anos, está com 40. Sempre foi o responsável pelo irmão. Fugiram dos canaviais do interior de São Paulo, deixaram a família por lá. Me disseram uma vez que trabalhavam como escravos, mas a família não quis acompanhá-los, ficaram com medo de morrer na fuga.

Chegaram à cidade e passaram a viver aqui na Vila. Lembro quando chegaram, eram quietos, analisavam tudo. Raramente vinham aqui. Tim chegou primeiro, conheceu os produtos que rolavam na área. Já Tião estava com o propósito de nunca mais ser escravo. É inteligente e na conversa logo conseguiu o respeito de todos.

Tim era o sangue no olho. Um completava o outro, como Manoel e Luiz Alberto na zaga do Atlético-PR! Uma dupla que se completa. Com o tempo os dois assumiram o trafico aqui, confesso que dei uma força pra que isso acontecesse; aqui no meu comércio sou sempre situação.

A ferramenta é Tim, que sempre fez as loucuras. Tião o manuseia. Isso fez desse trabalho familiar algo sincronizado e respeitado. Hoje, como é véspera de Copa do Mundo, lógico que dupla estudou sua forma de ganhar em cima, em todos os sentidos. Por isso Tim vai pra rua fazer suas rondas, ver como seus funcionários trabalham.

Depois que saiu da clínica, Timóteo nunca mais foi o mesmo, parou de beber, fumar cigarro, começou a ler grandes autores da literatura mundial. Não perdeu o sangue no olho, mas deu um ar mais romântico ao seu estilo peculiar de trabalhar.

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Por exemplo: quando soube da morte de Saramago, simplesmente sumiu. Quando apareceu disse que iria fazer seu ‘ensaio esquizofrênico sobre a cegueira’. No fim da tarde Tim colocou uns abutres em quarentena, pois achava que contaminavam seu território.

Sua ideia era passar uma lição pra outros, daria uma visão mais ampla do mundo pra quem está bitolado. Tim me disse esse dia: “Aí Zaca, sabe que o Saramago morreu?” – “Sei... e daí?” – “Daí que agora eu vou fazer meu ritual, tá ligado! Vou arrancar uma porrada de zóio aí de uns craquento, quer ir ver?” – “Do que se tá falando Tim?” – “Tá ligado aqueles filhos da puta que ficam ali no pé da Vila mendigando por crack?” – disse que sim – “Então, já peguei uns cinco e botei em cativeiro, ou aprendem ou morrem!”.

Esse episódio acabou em tragédia. Os viciados não aguentaram. Ele havia me explicado que aqueles caras estavam sem visão do que era a vida, estavam perdidos. Então tentou fazê-los voltar ao primitivo. Dentro do cativeiro ele queria explicar que sem o vício e através da percepção de que a vida é mais do que coisas materiais, os viciados conseguiriam superar a droga.

Tião me dizia que seu irmão iria matar todos lá dentro. Eu achava que não, acreditava que Tim iria tirar aqueles caras do crack. Mas Tim apareceu todo ensanguentado e disse que aqueles caras não mereciam viver, seus olhos só enxergavam o crack, então arrancou a visão deles.

Eu achava que eles haviam sobrevivido, mas Tião sabia que aquilo iria virar capa de jornal e sem Tim saber, sumiu com os corpos.

Sobre esse assunto os dois pouco discutem. “Pô Tião, por que sumiu com aqueles merdas?” – “Cara... eu sei que você estava com um plano superior, mas nós dois temos um plano ainda maior... esqueceu? Aquilo iria acabar com tudo mano!” – Tim, no auge da sua sobriedade deu um abraço no irmão e foi trabalhar.

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Esse história agora é lenda, muitos amigos nossos estão lendo Saramago. Tim xeroca vários fragmentos de livros e distribui por aí. Parece que ele conseguiu, mesmo que de outra forma, disseminar algo através da leitura e não do medo, como queria inicialmente. Atualmente ele vai até a rua onde os fumadores de crack ficam e distribuiu fragmentos de autores universais. Não há reclamação, também não há notícias, nem elogios. É véspera de Copa de Mundo e todos se preparam pro mega evento.

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Após quarenta minutos de atraso Tim chega. “Trago um presente pro meu querido irmão!” – “É bom que seja de valor, pois esses minutos de atraso devem ter boas justificativas. É o que espero!” – “Segura aí!” – entregou uma bola enrolada em papel de presente. Tião abriu e deu risada quando viu uma Jabulani. “Olha só... a tal da Jabulani! É original?” – “Porra Tião, aí não né! Claro porra... aqui o bagulho é doido mano, tá ligado?” – “Parece ser original” – eu disse, sobre a bola da Copa de 2010.

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Tim abraçou Tião, depois me abraçou. Nós três somos amigos, me considero um irmão deles, pois estou sempre presente. Olho pros dois e penso: “pô... já segurei tantas broncas desses caras que muitas vezes me sinto um paizão pra esses malucos! Quando for preciso acobertarei a causa desses dois. E sei que eles farão o mesmo ou mais por mim!”.

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Eu estou com uma curiosidade, que ainda não perguntei pra eles: “E aí Tião, vai comprar os ingressos pra Copa aqui no Brasil?” – “Vou ver em casa, sossegado” – olhei pro Tim – “E você?” – “Mais fácil eu ver no AA ou no NA. E você Zaca, vai abrir aqui né?” – “Não sei se abro aqui ou vou ver num que começa com ZO e acaba com NA” – e a gargalhada pegou, mas depois falei sério: “Acho que vou ver em casa com minha nega”.

“Mas então mano, como está nosso trabalho aí pra Copa?” – Tião questionou Tim sobre suas andanças por aí. “Então mano, nosso trabalho está a todo vapor, o bicho tá pegando. Muita gente doida cara, muita gente bebendo pra caralho, chapando, você precisa ver. Tem gente de todo tipo comprando. É gringo, é hermano, é o caralho da porra do mundo todo, nunca vi. Já tem gente vindo pra cá!” – “Mas então, como estão as contabilidades, trouxe a papelada?” – “Sim” – “Ótimo”.

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As prestações de contas são sempre no meu bar. Mas as entregas, chegadas de cargas e distribuição são feitas em pontos diferentes da favela. Também refinamos, mas é fora da favela, num bairro mais refinado também.

Após a logística estar devidamente resolvida, sirvo um copo de conhaque pra Tião, um copo de água tônica pra Tim e pra mim uma água ardente. Brindamos! O papo de futebol vai começar.

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“Olha só Tim, assisti um programa esses dias na TV, que os caras falavam de uns esquemas aí sobre patrocinadores da seleção brasileira em 2010 e tal... algo do tipo que você tinha me falado uma vez” – “Sobre cerveja e grana que entra no time?” – “Isso!” – “Mas e aí, o que você viu mano?” – “Pois é... disseram que era o Guaraná Antártica o patrocinador da seleção brasileira! Porra... eu achava que era a Brahma. Mas não... a Brahma é da Ambev, que patrocina a Fifa. Porra! Patrocina a Copa do Mundo!” – “Aé! Mas aparecia como se patrocinasse a seleção né?” – “Sim, mas é que a cerveja patrocinava alguns jogadores: Luiz Fabiano, Daniel Alves e Júlio César. Acho que até o Dunga” – “Sério! Até o Dunga?” – me surpreendi.

“Pois é” – continua Tião, que é sempre muito bem informado – “tem vários esquemas que descobri depois lendo na net. Futebol e cerveja andam juntos. Em 2006, na Copa da Alemanha, a cerveja que patrocinava a FIFA e que aparecia no mundo todo era a Budweiser. Em 2010 a Budweiser apareceu só na Europa e nos EUA” – eu e Tim ficamos parados, só mexemos a cabeça.

Tião continua – “Então as marcas que fazem parte da Ambev aparecem nos países em que são mais fortes comercialmente. No Brasil a Brahma, nos EUA e Europa a Budweiser... e assim vai. Cada país que tem uma cerveja dessa empresa que mostra como se fosse patrocinadora da seleção do país... esse tipo de coisa... entenderam?” – “Mais ou menos” – diz Tim com cara de atordoado. “Eu acho que sim” – eu disse. E dei uma piscada pro Tim, como se quisesse dizer: “melhor não contrariar!”.

“Uma coisa que não lembrava” – continuou Tião, com cara de louco – “O Guaraná Antártica estava no colete de treino da seleção em 2010, só o Guaraná... será que era por que os jogadores evangélicos não queriam uma cerveja no colete?” – “Sei lá! Mas conheço um monte de evangélico que deixa!” – disse Tim em tom irônico. Nós três caímos na risada e eu emendei: “eu deixo também, até torço o colete no fim do treino pra ver se saí um gole de Brahma”.

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Antes tinha o cigarro nas corridas de carros, hoje a cerveja. A bebida alcoólica está no futebol, esporte mais popular do mundo. Futebol e cerveja, uma mensagem subliminar que nem precisa ser feita de forma tão inteligente, pois ela já está impregnada em nossa cultura.

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“Em 2010, a CBF, de todo seu faturamento, tinha apenas 20% da parte da cervejaria. O Beckham e a Sharapova, por exemplo, não aceitaram renovar seus contratos com a Pepsi para não induzir crianças a beber refrigerante, mas o Dunga com o patrocínio de cerveja era o treinador do comprometimento!” – disse Tião. “Pô mano, estava torcendo contra o Brasil?” – “Claro que não mano, mas nós sabemos o tanto de falcatrua que rola, aí fica difícil botar fé nas coisas! Acho que aquele seu amigo punk lá tinha razão cara, quando cantava aquela música doida dele” – “Ah! Se é assim eu também concordo, agora falou minha língua. Aí Zaca, bota o cd da banda do meu amigo aí, pra curtir um som foda, bota aquela música que você sabe”.

Então fui até o toca cd, procurei no meio da bagunça uma gravação de uma banda desconhecida. “Qual música que é?” – “É a 12”. Então o som começa e nós cantamos ela inteira: “é difícil aceitar as coisas como elas são! / principalmente porque tem tanta coisa errada / mesmo amando nossa terra eu fico sem ação / diante da manipulação de toda massa / chega na Copa todos são patriotas / chega na eleição todos são idiotas / chega na Copa todos são patriotas / chega na eleição todos são idiotas / é difícil aceitar esta contradição / união das massas e atitudes invertidas / esquecem quem é o verdadeiro campeão / atitudes esquecidas almas perdidas / chega na Copa todos são patriotas / chega na eleição todos são idiotas / patriotas idiotas / patriotas idiotas...

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E cantamos a música por várias vezes a todo vapor. Torcemos sim pra seleção, nem todos bebemos na hora dos jogos, mas o bom futebol é igual à paz, sem bandeiras.