Ele está no topo. Na cadeia do sistema, lidera na solitária.
Faz a ligação:
- Fala chapa!
- E aí?
- O de sempre?
- Isso.
- Beleza. Já te ligo.
Com satisfação desliga o celular. Está no degrau mais alto, em algum
lugar entre a luz e a escuridão; ou acima disso tudo.
Liga seu carro e vai pra casa. Euforia do dever cumprido. Ele está
acima dos urubus.
“Compre seu politico, venda seu voto! Sempre dá certo quando se tem
carniça de sobra”- enquanto pensa, o celular interrompe seu raciocínio:
- Pode falar.
- Na mão. Vou mandar alguém
aí…
- Não estou em casa ainda.
- Quanto tempo?
- Uns 40 minutos.
- Tão fodeu…
- Calma, já te ligo.
…
- Tá, mas se acha que ele
vai te matá por quê?
- Porque eu devo pra ele,
pô.
- Cala a boca Xitoco, se pá
ele te manda fazê uns lance… e pá… tá ligado?
- Se pá ele mete um canhão
na minha cara, isso sim…
…
“Sirva-se a vontade. Só não deixe de respeitar seu patrão”- e o celular
mais uma vez interrompe seu pensamento:
- Aí, não vai rolar…
- Eu não disse que ligaria?
- Tá sujo pra sair agora…
- Mas não é pra agora.
- Daqui 40 minuto quero tá
longe…
- Onde você está?
- Centro. Faz assim, se tá
onde?
- Estou passando pelo
centro.
- Então hoje se vem pra cá?
- Mas você não disse que
está sujo aí?
- Eu dô um jeito.
- Então se agiliza.
- Tá… fica pelo centro, eu
já te ligo.
…
- Dá uma bola aí e fica de
boa…
- Não quero.
- Fuma aí, fica de boa
cara…
- Táqui o que eu vou fumá… ó….
- Porra véio, faz dois
minutos da outra… aí Xitoco, tu tá muito descontrolado mano.
- Vô morrê mano…
- Vai não…
- No Guarujá mataru por
menos… se acha u quê?
…
O trafica manda um dos seus chamar Xitoco na boca. Enquanto isso, ele
faz mais uma ligação:
- Seguinte: tá parado por
onde?
- Seguinte digo eu… resolvi
passar na Boca Maldita e engraxar meus sapatos. Te espero lá, se agiliza.
- Mas é o seguinte, não
posso sair daqui. Vai um dos meus aí representá.
- Eu conheço?
- Não. Mas espera uma meia
hora ou menos que vou representá.
…
Xitoco está descontrolado. Há um confronto químico dentro do seu corpo:
cocaína x crack. E por ironia do destino, ele foi convocado!
Mas o chamado não o deixa nada feliz.
Como sabe das leis do mercado em que está metido, quanto mais próximo
do seu patrão, no seu caso, pior…
…
Sabe o momento em que você fica paralisado com uma notícia que acaba de
receber? Neste momento Xitoco acredita que recebeu um anúncio de morte.
…
- Seguinte Xitoco: o
patrão…. é…. quer dizer… um cliente grande aí tá lá na Boca Maldita engraxando
o sapato. Teu trabalho é levar isso lá. Pá pum… jogo rápido… aí depois volta
aqui…
- Só levar?
- Só.
- E como vai ser? –
pergunta Xitoco um pouco surpreso com a facilidade do “favor”.
- Pega esse celular aqui ó…
quando chegá lá, liga pra esse número aqui ó… tá gravado aqui no celular… aí
mano… tu sabe mexê nessa porra aqui ou eu tô só falando aqui?
- Calma, pô. Eu sei mexê na
parada… – disse Xitoco já com o celular e a cocaína nos bolsos.
…
No sistema todos sabem que Xitoco é um quebrado de um usuário. Por isso
foi escolhido, pois se cair não dá nada. E ele anda desequilibrado, passa as
calçadas em direção ao centro de Curitiba. Sabe que esse pequeno corre não o
livrará.
É total escravidão.
Apenas uma coisa leva Xitoco ao destino combinado: saber quem é o
verdadeiro patrão. Na sua lógica, saber isso é ter A informação. Uma ascensão.
É como subir um degrau.
Porém esse otimismo dura pouco. O celular toca:
- Aí chapa, não vai foder
com a parada… eu to de olho em tu… se ta ligado?
- Tô ligado… tô indo lá
porra… tô quase chegando.
- Vamo vê…
E desligou.
…
A queda!
Voltar a si
Ao pé da escada
No seu caminho
Degraus infinitos
…
“O certo é somente aquilo que eu penso”- assim segue Xitoco.
Já próximo a Praça Osório, ele tem a “a ideia” de analisar o produto.
Para o passo e aperta a parada entre seus dedos. “Caralho, tudo ‘impedrada’”-
pensa eufórico.
Uma sensação de poder toma conta de Xitoco: “Seu lugar é meu!”- disse
pra si quase sussurrando. E a partir de agora ele esquece tudo. Não quer mais
saber do patrão, da dívida… de nada…
Seu sentimento é de ascensão. Na sua cabeça, a cada novo passo… sobe
degraus. E só o seu topo o fará parar. “Ninguém segura o papai aqui!” – rasga
um pedaço do papelote e com sua unha longa, usa a do mindinho, manda uma
cafungada.
…
- Porra, o filha da puta
não atende – diz o trafica puto da cara. Ele delegou pra Xitoco a correria
porque acredita ter um P2 o seguindo.
“Eu vô matá esse porra… desgraçado…”.
E o dito cujo agora vaga pelas ruas a consumir a “a parada do patrão”.
É como se compartilhasse a sensação de estar num degrau lá no topo da pirâmide.
…
- Sabe o que você é? Um
incompetente…
- Calma chapa, vou
encontrar o cara…
- Você e seus amigos são
iguais. Você sabe o que acontece com gente burra?
- O loco chefe! Qué isso?
- Vou encontrar o seu lugar
comum… um lugar onde todos iguais a você estão…
- Que papo é esse?
- Não esqueça, esse lugar
vai encontrar vocês.
Ligação encerrada.
…
O patrão oculto ordenou e a proteção do trafica se retirou. Na
hierarquia isso nada mais é do que uma ordem de cima pra baixo.
Diferente de Xitoco, que vê de baixo pra cima. Vislumbra um poder
imaginário e, no mais profundo do seu ser, sonha ter outra vida.
…
Ele já andou em círculos durante um bom tempo. Agora vai ao lugar onde
normalmente gosta de ficar, próximo ao Mercado Municipal de Curitiba. Não foge.
Está totalmente transtornado. Não consegue formar um raciocínio. As
ideias se misturam. Senta no seu canto escuro, embaixo de uma escadaria. Já
consumiu tudo. Falta pouco para o sol chegar. Mas o que ele espera na verdade é
a morte.
Sozinho com seus fantasmas, agora ele vasculha seus bolsos. Está em
busca da única coisa que sempre carrega consigo; um pedaço de papel já velho
com o número de telefone da sua mãe.
Com o fone que “ganhou” em uma das mãos e com o papel velho na outra,
aos prantos, faz a ligação.
O sol dá um pequeno sinal que está pra chegar. Xitoco com o celular no
ouvido abaixa a cabeça e se esquece do mundo.
- Alô – sussurra uma voz
confortável e sonolenta…
Do outro lado da linha a mãe de Xitoco só escuta os disparos de
pistola…
…
Por fim…
Xitoco e seus pares encontram um lugar comum.
E o patrão já tem seu novo exército. Esse que tentará subir, sem chão,
os mesmos infinitos degraus.
Foto: Suhellen Dolenga / Texto: Regis Luís Cardoso
Texto publicado originalmente no blog Caos Descrito