segunda-feira, 17 de maio de 2010

Arquivos que se vão

Fim

Minha cabeça parece que incha. O que era pra ser uma noite depois de um grande show virou alguns dias. Por isso estou preocupado. Se Letícia me procurou no local combinado, deve ter desistido. Agora tenho dois trabalhos, achá-la e justificar essa merda de atraso repentino.

Quando se trata de algo tão importante, não se deve fazer o que fiz. Tudo bem, não há tempo pra lamentações, então o esquema agora é ir atrás da redenção.

...

Vou até o bar que frequento, como combinamos. Sabia que Letícia não estaria lá, mas minha intenção era saber se ela deixou algo pra mim. Sentei como se nada acontecesse. Dei algumas olhadas desconfiadas pro ‘FDP’ – o dono do bar. Ele nada fazia, acho até que achava algo estranho em mim.

Estava de frente pro balcão, como vi que nada constava por ali, me virei pro salão. Olhei às pessoas que estavam por lá. Sinceramente, ninguém que se aproximasse de uma amizade com Letícia estava presente. Mas sabia que algo iria acontecer por ali, se não fosse naquele exato momento, amanhã talvez...

...

E assim as coisas foram se encaminhando. Como não sabia como encontrar Letícia diretamente, comecei a fazer o caminho combinado anteriormente. Afinal, tínhamos negócios a tratar. “Espero que ela tenha dado importância a toda essa merda, senão estou na merda novamente” – pensava comigo.

No terceiro dia de bote errado, sai do bar desanimado. “O que será que aconteceu? Acho que ela desistiu de tudo!” – algo dizia isso pra mim. Devagar pela rua escura, desatento! Só lembro que abri os olhos e estava deitado num sofá, o teto era branco.

Tentei levantar... “não não querido! Fique deitadinho aí” – disse uma voz
feminina. “Que porra é essa? Aonde estou?” – “Calma querido, você está bem, não era pra pegar tão pesado assim”. Naquele momento não conseguia mexer meu pescoço. Como se não bastasse torcicolo frequente, agora estava com uma pancada na cabeça.

...

Não lembro o quanto ‘dormi’, mas já era dia e abri meus olhos. Ao meu lado Letícia dormia numa poltrona, estava numa sala, era um apartamento pequeno pelo visto. Uma porta aberta dava pra um quarto, conseguia ver um pedaço da cama de casal que acomodava alguém. Só percebi isso porque avistei os pés de uma pessoa dormindo por lá.

Dessa vez consegui sentar. Coloquei as duas mãos na cabeça, estava na merda mesmo. “Porra o que aconteceu aqui?” – disse em voz baixa. Logo a pessoa que estava deitada na cama levantou. Era um cara alto, careca, com uma tatuagem no braço. Ele vestia sua roupa e viu que eu estava sentado no sofá. “E aí cara? Está melhor?” – perguntou pra mim. “O que aconteceu?” – “A Letícia pediu pra eu trazer você aqui, mas sem você saber o caminho... entendeu?” – “Por que isso?” – “Depois pergunte a ela, eu tenho mais o que fazer, falou cara!” – disse isso e saiu.

Nisso olhei pra Letícia e ela simplesmente levantou e pediu se eu queria um café. “Quem era aquele cara aqui contigo?” – “Apenas um amigo, pedi pra ele me fazer um favor!” – “Entendi!” – “Mas ele pegou pesado contigo, disse que era pra ser apenas de leve! Mas ele pega pesado mesmo” – e sorriu pra mim. “Pelo jeito ele sempre pega você pesado então!” – “Você e seu sarcasmo né! Mas não posso reclamar dos meus amigos, ok?” – “Ok!”.

“Vai querer café ou não?” – “Beleza, manda ver!” – e ela botou água pra ferver, tirou o pó de café da geladeira. “Por que guarda o pó de café na geladeira?” – “Não perde a essência!” – não respondi, cada um com suas manias. Coloquei as duas mãos na cabeça novamente, passei a mão perto da nuca e senti finalmente o núcleo dessa ressaca forçada, estava com um curativo.

“O que esse seu amigo fez comigo porra?” – “Nem te conto!” – “Ah! Estou falando sério!” – “Ele te deu uma bela coronhada na cabeça, levou sorte de não ter morrido!” – “Você acha que eu iria morrer com uma coronhada?” – “Já está assim, imagina o que pode acontecer! Pra quem quer ser um assassino, você está muito molenga viu!”.

...

Sentamos. Na cozinha ela olhou pra mim e perguntou: “o que aconteceu?” – “Do que está falando?” – “Não se faça de idiota pra cima de mim, já tomou uma e quer tomar mais?” – “Porra, pega leve, qual é?” – “Você não havia dito que iria ao bar pra conversarmos?” – “Pois é, mas surgiu um imprevisto, tive que me ausentar dois dias apenas” – “Não quero saber. Só acho que você está é bem fodido, isso sim” – “Como assim?” – “Te viram no show!” – “Não vem com essa, ninguém me conhece”.

“Você pensa que a filha e a mulher do seu melhor amigo não sabem quem você é?” – “Mas elas não me viram porra!” – “Não viram você tentando matar um bandido com uma latada, ainda bem né, senão você seria a comédia do século” – “Porra, não precisa humilhar, foi uma atitude desesperada, nada mais!”.

Perguntei a Letícia como elas me viram. Conforme desconfiei, foi quando eu e Letícia conversávamos. “O que você disse pra elas?” – “Disse que fui te dar um abraço, pois fazia tempo que não te via”. Aceitei a explicação, me pareceu razoável. Agora precisávamos ir direto aos negócios.

...

Tomei minha caneca de café. Olhava Letícia, uma prostituta gente fina. Estava ansioso pra saber dos planos. “Bom, o que vamos fazer pra matar aquele filho da puta? Você tem algum plano?” – Letícia me olhou com cinismo: “você quer matar um mafioso sem ter plano?” – “meu plano era me aproximar de alguém próximo a ele e pagar alguma coisa pro serviço ser feito. O que acha?” – “quanto tem em dinheiro?” – “o suficiente pra financiar uma merda de assassinado porra!”.

Letícia viu que eu não estava pra brincadeira, mas também não era flor pra se cheirar. Então minha situação era ser o mais cauteloso possível, usar sua influência pra chegar até... “como é o nome daquele filho da puta que eu quero matar mesmo?” – Letícia sorriu e disse: “você é um grande bosta de um amador filho da puta mesmo”. “Porra! Vai ficar aí me tirando? Como é o nome dele?” – “Calma querido, o nome dele é João Navarro. Não esqueça... João Navarro” – “Que porra de nome é esse. Uma mistura de brasileiro com italiano... sei lá!” – “mais ou menos isso. De um tempo pra cá ele encarnou algo da máfia. Está envolvido com política, domina todos os bairros daqui. Trafica drogas, armas, contrabando. Você é um cara corajoso de querer matar Navarro” – “Nós somos!” – “Opa! Eu quero ganhar o meu... se for lucrativo... vamos lá!” – “E se não for?” – “Acho que você acabará sofrendo um acidente ou algo parecido!”.

...

Essa conversa foi muito produtiva até o momento. Estava desconfiado dessa vez. Tinha uma boa reserva de grana no banco, estava prestes a me arriscar e bancar esse crime. Realmente nunca fui um assassino, por isso a importância de Letícia, só a maneira como cheguei a casa dela já viabiliza o negócio.

“Vou tomar um banho, já volto!” – disse Letícia. Abriu a porta do banheiro e tirou seu vestido. Ficou nua na minha cara, me encarou. “Nunca viu? É amador nisso também?” – deu uma risada e entrou na ducha. Fiquei louco com o corpo dessa mulher. Realmente ela era uma puta gostosa.

Ela saiu da ducha e veio até a cozinha enrolada numa toalha. “Que safada!” – pensei com meus botões. Pegou um prato e botou no fogão, acendeu o fogo, deixou-o no mínimo, colocou o prato em cima. Foi até o quarto e voltou com uma peteca de cocaína. Fez todo o serviço e esticou duas lagartas.

“Vai aí?” – disse pra mim. “Não! Isso não é comigo” – ela não pensou duas vezes e cheirou as duas lagartas de uma vez. “Quer maconha?” – “Não” – “O que você é ein... um alien viado? Não cheira, não fuma. A palavra sexo não existe no seu vocabulário então”. Já estava puto da cara, levantei da cadeira, arranquei aquela toalha dela e fomos pro ‘combate’.

...

Depois da trepada, deitados na cama, já percebia que minha cabeça estava menos dolorida. Realmente Letícia era profissional do sexo. Ela levantou e colocou seu vestido, foi até o fogão. Voltou cafungando e disse: “quanto de dinheiro tem aí?” – “como assim?” – “você acha que eu transo de graça?” – “porra, mas você estava me provocando!” – “esse é o meu trabalho”. Puta merda estava duro.

“Seguinte, tive uma ideia! Daqui a pouco vou ao banco e saco o que te devo. Também saco o que vou pagar pra matar o Navarro, mas precisamos achar alguém!” – “Esse machucado na sua cabeça não te diz nada?” – “Aquele cara que estava aqui? O que ele é?” – “Bom, ele é várias coisas. Agora se oferecer uma grana boa, ele mata Navarro, mas o dinheiro tem que ser o suficiente pra fugirmos. Quando digo fugirmos, eu digo todos nós desaparecer do mapa. Compreendeu?” – “sim... entendi aonde está querendo chegar”.

Olhei pela janela e já sabia o lugar onde Letícia morava. “Porra... custava você ter me dito que morava neste bairro? Eu tinha que ter tomado uma porrada na cabeça?” – “É sempre bom prevenir né!” – “puta merda”. Lá vai ela brincar com seu ouro branco.

“Ok... quanto eu te devo Letícia?” – “duzentos e cinquenta” – “O que? Está maluca?” – “É o preço, se não pagar falo pro Navarro” – “Como é que é, de que lado afinal você está?” – “Olha aqui cara, eu amava nosso amigo, mas ele morreu, essa vingança é sua, eu só estou procurando uma forma de sair dessa vida e dessa cidade”.

Vi que o caminho agora era sem volta. “Beleza, eu vou até o banco retirar uma grana, quanto que trago pro seu amigo” – “Vamos esperar ele chegar aí vemos isso. Se quiser mais duzentos e cinqüenta!” – “Não obrigado! Não vale tudo isso!”. Não deveria ter dito isso, foi uma ofensa pra ela. Letícia levantou, botou um som e começou a me provocar. Dançava com aquele vestido curto, um corpo muito foda. Se masturbava na minha cara praticamente. Não aguentei... mais duzentos e cinquenta reais.

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O amigo da Letícia chegou. Não falou conosco, foi direto no fogão e virou uma peteca de cocaína. Fez três lagartas, cheirou uma, passou a outra pra Letícia e dessa vez eu meti meu nariz pela primeira vez naquilo. “Vamos aos negócios?” – disse ele. “Vamos, vamos” – disse Letícia.

Levantei com um brilho, o peito estava estufado, uma vontade de falar. Tudo estava mais próximo do meu raciocínio e a razão parecia ser sempre minha. “O negócio é o seguinte” – comecei – “você vai matar o Navarro, eu vou agora mesmo ao banco sacar dez mil reais pra você. É o suficiente?” – “Claro, claro”.

...

“Acho que ele não volta com a grana!” – “calma cara, ele vai voltar, tenho certeza” – “porra, o Navarro vai me matar, eu to fodido!” – “calma cara, ele vai voltar com a grana. Como foi a última conversa com Navarro” – “tem que ser hoje, eu tenho que pagar ele hoje, não tem como ser outro dia” – “já pensou em matar ele?” – “Não tem como, ele está com a polícia, se meteu com política porra, está com todo mundo junto. Paga propina pra todo mundo, as pessoas o adoram, está sempre cercado de gente inocente, gente que vai protegê-lo. Ele está blindado” – “deve quanto de pó pra ele?” – “depois de hoje vai pra três mil” – “vamos ganhar dez agora, pagamos e ficamos tranquilos” – “É isso aí”.

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Consegui sacar dez mil e quinhentos reais. Uma parte pra pagar Letícia e outra pra pagar aquele careca que estava com ela. “É meu amigo, hoje começa minha vingança, tenho certeza que está ao meu lado, me protegendo”. Pensava comigo se quem morre fica nos vendo, o que será que Leopoldo estaria tentando me dizer? Acho que estaria orgulhoso de mim. Com Letícia ao meu lado, uma pessoa que ele confiava.

...

Chego ao apartamento de Letícia, me dá um calafrio. “Que porra é essa?” – penso comigo. Uma moleza nas pernas. Uma vontade de não entrar me bateu. “Ei! O que está fazendo aí?” – aquele careca estava vindo e nos encontramos na porta do apartamento. Ele abriu a porta e me empurrou pra dentro. “Conseguiu a grana?” – “Está aqui”.

Ele pegou o dinheiro, contou e olhou pra mim. Eu perguntei: “cadê a Letícia?” – “está no carro”. Ele tirou uma pistola. “Que porra é essa?” – “fique calmo, não vai doer. Se está com saudade do seu amigo, vou fazer um favor pra ti. Entendeu?”. Percebi tudo. Fodeu. Lá estava eu fodido mais uma vez. Nem seu aviso adiantou meu amigo.

...

Realmente não senti nada. Estava deitado com a cara no chão, virada pra porta. Com os olhos ainda abertos vi aquele cara fechar a porta. Entrava uma luz pela janela, aquilo parecia um alento pra mim.

Pois dizem que quando se fecha uma porta, abrem-se inúmeras janelas. Pode até ser...