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- - Ei meu filho, vai buscar lenha
pro seu pai vai... papai tá cansado.
O garoto foi até a porta e voltou.
- - Tá muito escuro lá fora
pai... tenho medo!
- - Ah moleque, deixa de ser
medroso, vai logo buscar lenha pra mim. Anda logo...
...
Pai e filho moravam ao lado de uma olaria, num casebre.
Chegaram ao lugar após a mulher da família adoecer e morrer. Após seis meses, o
garoto ainda estava abalado com a perda da mãe. Viviam em Curitiba. Deixaram a
capital após o enterro.
Foram parar no interior do Paraná, região
noroeste, em Palotina. O pai do menino
foi trabalhar na fabricação de tijolos e ser caseiro num sítio. Chegou ao
interior indicado pelo seu sogro, já que era sozinho... não tinha parentes.
A olaria era longe da cidade. A criança vivia
entre a escola e o sítio. Aquele lugar a assustava, principalmente após o por
sol.
- - Não vou sair! – disse assustado
o garoto, pra depois correr pro quarto.
Então o homem se levantou da cadeira. Estava na
cozinha tomando uma sopa. Era inverno. Foi lá fora na escuridão e buscou mais
lenha pra colocar no antigo fogão. “Moleque medroso” – pensou.
A caminhada era curta. Com o lampião aceso tudo
ficava mais fácil. Apenas uns metros até o galpão onde as lenhas estavam
empilhadas.
Aquele homem foi até lá e nunca mais voltou. Já
o menino, adormeceu no quarto.
Na manhã seguinte, o moleque foi acordado por
uma amigo e vizinho que trabalhava com seu pai na olaria. Descobriu então que
seu ‘chefe’ e principal companheiro fora picado por uma jararaca.
Depois da fatalidade, a criança retornou a
Curitiba. Foi morar com seus avós.
...
Os anos se passaram. O menino cresceu. E no inverno do ano em que completou 18 anos seus
avós morreram. Ele não tinha notícia de outros parentes.
A partir daí passou a viver sozinho. E todo
inverno era igual. Como se fosse uma maldição, com a chegada do frio, também
chegava uma sensação de ter deixado algo pra trás. Algo inacabado. Ele se culpava
pela morte do pai.
Depois da morte dos seus avós, o jovem deixou de ter uma vida normal. No
inverno, ele não conseguia sair de casa. Praticamente hibernava. Essa época do
ano tornou-se sinônimo de medo, solidão, culpa e tristeza.
E com o tempo... isso só piorou... passou a
sentir a presença de mais pessoas ao seu lado. Escutar sussurros. Ficou
transtornado. E só acontecia no inverno, após ele ficar completamente sozinho.
...
Após dois anos de sofrimento naquela casa, a
vendeu e comprou um apartamento em Pinhais.
...
Agora é o primeiro inverno no apartamento novo.
Mora nele desde janeiro. A mudança o fez bem. Porém chegou o frio! A sua
prova... “a hora da verdade!”.
Uma de suas armas pra se livrar do que acredita
ser uma maldição é escrever. Foi ideia de um amigo do trabalho. “Se começar a
sentir algo, escreva. Coloque no papel essas coisas que vive falando! Vai que
ajuda!”.
...
“Primeiro dia:
escuto uns sussurros agora. Um som que se confunde. Parece uma reza. É
algo que me persegue. Não consigo entender. Se aproxima. Fica mais alta a voz,
mas mesmo assim não entendo. Estou fraco e sei que terei pesadelos”. Escreve apenas
isso. Chapado de vinho, adormece.
“Segundo dia: novamente os sussurros. Os mesmos
malditos sussurros. Eu não aguento mais. Voltou tudo como era! É uma voz. E ela
fala bem aqui onde estou. Eu não consigo entender as palavras. O mesmo som se
repete. Agora vem de trás da cortina. Bem na janela. Não consigo dormir. Estou
sozinho no meu apartamento no nono andar”.
Após terminar essas poucas linhas, guarda os
papéis e sua caneta no bolso do casaco. Se agasalha bem e sai do apartamento em
direção a rodoferroviária de Curitiba. Consegue pegar o último ônibus pra
Palotina.
...
Em Palotina:
O taxista reluta em leva-lo até a antiga
olaria. “Aquele lugar é mal assombrado!”, diz o motorista. “Imagino que sim” –
responde friamente.
E não mais conversou.
Porém o taxista insiste: “dizem que a chaminé da
olaria até hoje não se apagou. Há chamas... mas não há fumaça! Como isso é possível?
Também viram um vulto lá! Uma assombração”.
Não respondeu.
...
Chega ao sítio! Paga o taxi e entra na área que
antes foi uma movimentada olaria. Está apenas com suas roupas de frio, papel e
caneta.
Ainda atordoado com a paranoia que passou dentro
do ônibus, caminha como um zumbi. Obviamente não dormiu. Teve a pior noite da
sua vida. Está exausto.
Logo avista o terreno. Agora entende o taxista.
É só mato. Mato pra todo lado. A estrutura da fábrica de tijolos se deteriorou.
Permanece apenas a fachada e a chaminé.
“Que grande merda é você”.
Da sua antiga casa? Nem sinal. Do galpão?
Também não. Imaginou algo bem diferente.
Mesmo assim, resolve ficar e sentar num tijolo
em frente a fachada. Saca seus papéis e sua caneta:
“O que eu falaria pra você? O que você falaria
dessa vez? Você não se importa de tirar meu chão todos esses anos? Isso não é
diferente de puxar meu tapete. Não sei nem juntar meus pedaços. Eu vivo a me
enganar. Vivo sozinho”.
Ao rabiscar essas palavras, alguns tijolos do
topo da chaminé se rompem. Um barulho inesperado, por isso assustador.
Com um pouco de receio, se levanta e começa a
caminhar pelo que sobrou da olaria.
...
Das recordações no sítio, lembra apenas do seu
pai sentado na cozinha, com uma colher na mão e o bigode sujo de sopa. Foi neste
momento que ele deu a ordem pra buscar lenha. Outro resgate que as vezes tem,
normalmente em sonhos, é de estar perto de um forno a observar tijolos sendo
cozidos. Aí sente um terrível calor e acorda molhado.
Vai ao antigo forno ou o que sobrou dele. O
passado torna-se mais presente.
“Olhos. Nostalgia. Você se apressa pra competir
com o tempo, porém só pode sair quando estiver ao ponto” – pensa. Percebe que
esqueceu de pegar o papel dessa vez. Mas fica assustado ao relembrar que essa
frase era exatamente o que seu pai dizia.
“Eu desejo a você o melhor. Então aqui terá o pior”
– mais um dos dizeres do seu pai. Fica em estado de choque com a lembrança.
Senta na terra vermelha e compulsivamente chora.
...
O cansaço o pega de surpresa e adormece ali
mesmo. Não percebe o tempo passar. Desperta com o frio e com uma sensação
diferente!
Mesmo com o sol dando adeus, pega seus papéis e
sua caneta.
“Você me pediu pra buscar lenha... eu não fui.
Tive medo. Você foi... e nunca mais voltou. O veneno o levou! Você era o
lenhador. Agora sou eu. E vivo dividido. A minha vida e a vida que deixei. Sou
seu machado afiado e vim aqui pra cortar o mal pela raiz”.
...
Antes que fique totalmente escuro, ele procura um
lugar pra fugir do frio. Se arrepende de ter saído de casa bêbado e
desesperado. Encontra refúgio entre alguns escombros em frente a fachada da
olaria.
Já abrigado, depois de um tempo, começa a escutar
um barulho de lenha queimando. Fica em pânico e curioso ao mesmo tempo. Resolve
ir até o forno. Está surpreso por não escutar sussurros até o momento.
Em silêncio, vai lentamente em direção ao calor
e consegue ver algumas chamas. Aí, pra sua surpresa, surge uma bela mulher! É ela
quem coloca lenha no forno.
Chega bem perto, por trás dela e pergunta (ainda
duvidando se tudo aquilo realmente é real):
- - Quem é você?
Com um grito de espanto ela o recebeu.
- - Calma! Calma! Desculpe! Não quis
assustá-la! Na verdade, eu é que estou assustado. Calma... por favor...
calma...
Ela o olha com espanto. Sua garganta está
trancada... não sabe o que dizer...
- - Calma! Olha... só vim aqui
ver esse lugar. Me perdi no tempo e resolvi passar a noite aqui. Eu já morei aqui.
Conheço esse sítio. Por favor, acredite em mim, não vou machucá-la.
Após alguns segundos de silêncio, ela meio
trêmula e com a voz engasgada pergunta:
- - Você já morou aqui?
- - Sim.
Agora ela o observa com cuidado. Então faz o
desafio:
- - Se você já morou mesmo aqui, então
diga: quem sou eu?
Ele trava. Não entende nada.
- - Olha, me desculpe, mas não
sei quem você é... do tempo que vivi aqui infelizmente não consigo me lembrar
de nada. É como se tivesse apagado tudo da minha memória...
- - Isso não é possível... ninguém
simplesmente deleta as coisas da cabeça.
- - Parece que é possível. Fiquei
uns meses aqui e minha lembrança, pode acreditar, não é das melhores.
- - É mesmo... o que aconteceu?
- - Perdi meu pai aqui... só
lembro disso...
- - Não pode ser! Você é mais um
dos garotos da cidade que vem aqui ver se o sítio é mal assombrado. Não tá
falando sério.
- - Eu pareço estar de
brincadeira?
- - Meu deus... não pode ser... é
você mesmo!
Ela o empurra pra mais perto da luz das
chamas... pra conseguir ver sua fisionomia com nitidez. Ele tenta explicar...
- - Olha... meu pai trabalhava
aqui...
Foi interrompido em tom de desespero:
- - Você não se lembra de mim? Como
você tem coragem de dizer isso? Não se lembra do tempo que ficávamos aqui
conversando. Você falava da sua mãe. Sentávamos aqui depois da escola... Nós éramos...
Essa conversa o levou ao colapso. Sente uma dor
na cabeça e como se levasse um golpe no queixo, vai ao chão. Desmaia.
Acorda numa casa não muito longe da olaria. Da
janela avista a antiga chaminé. Se levanta e tenta caminhar, é derrubado por
uma tontura. Com o barulho, a mulher vai até o quarto.
- - Tá tudo bem?
- - Não sei... não entendo...
onde estou?
- - Na minha casa. Na casa da sua
amiga. Lembra?
- - Amiga?
- - Sim, nossos pais eram amigos.
Meu pai te acordou, ele encontrou seu pai morto. Nunca mais vi você. E nunca
mais o esqueci.
- - Você...
E mais uma vez o passado vem como um furacão e
o devasta. Volta ao seu sono profundo. Desta vez no seu sonho lá está seu
primeiro amor.
Então acorda. Se sente protegido. Aquecido.
Caminha pela casa e vê o fogão a lenha. Vai até ele e se aquece:
- - Oi – diz ela ao surgir
repentinamente.
- - É você mesmo?
- - Sim.
- - Como isso é possível? Por que
está aqui?
- - Eu moro aqui. Meus pais
morreram faz dois anos e eu fiquei aqui.
- - O que você faz?
- - Estudo.
- - Mas... por que o forno da
olaria?
- - As pessoas acreditam que a
fábrica é mal assombrada. Na verdade eu acho graça. Apenas faço fogo ali. Meu
pai fazia. Eu só continuo. É pra lembrar daquele tempo! Da minha vida. Da minha
família. De você. Dos nossos pais se divertindo. Você não lembra de nada mesmo?
- - Não... a minha vida inteira tentei esquecer o meu
passado aqui. Me culpo pela morte do meu pai. É estranho...
- - Quando você chegou aqui, já estava
frágil. Abalado pela morte da sua mãe. Aí veio a morte do seu pai... então te
levaram...
- - Meus avós...
- - Sim...
- - Pois é...
- - Mas mesmo assim. Também é
estranho pra mim. Não sei te dizer. Primeiro meu pai, depois minha mãe.... eles
se foram. Fiquei sozinha... e você passou e ficar presente no meu pensamento. Só
você!
...
Após o reencontro, ele vendeu tudo que tinha em
Pinhais e voltou pro interior. Vem inverno... vai inverno... e eles permanecem
ali.
Nas noites mais frias, o casal vai até o
forno... resgata os bons momentos e brinda a nova vida.
E nesta noite de inverno, na antiga olaria, ele
olha pra ela e diz:
“Você me trouxe a vida. Passei a acreditar que
não existe nada mais lindo que o sorriso de uma mulher. Vou viver pra fazer
você sorrir. Ver você feliz é algo que me fortalece. Quando me resgatou, me purificou. Ver você é como ver a paz. Você
carrega uma luz que eu quero seguir. E foi isso que me trouxe aqui. Sua força se propaga pelo
infinito. Agora você me aquece. E eu me sinto iluminado”.
* Foto: Bruno Duarte Sampaio
*Texto originalmente publicado no Caos Descrito.