Em casa ele põe o sapato, o sol ainda não nasceu. Vive sozinho. Ao seu
lado apenas roupas sujas, meias e livros pelo chão. Precisa
sair, o relógio faz parte do seu corpo.
Mais um José indo ao trabalho, ao lado de milhares de Josés. São as
vidas que seguem. Os Josés, as Marias. Todos iguais. Vão em
transportes, transportam-se.
No trabalho, trabalha. Na noite, bebe. Em casa, dorme. Com a namorada,
namora.
Agora José está em frente ao computador, não sabe o que fazer. Olha a
tela, está a beira do caos. São tantas opções que já não sabe escolher. Pensa
em colocar uma música. Então olha pra seus lp´s, não sabe escolher. Vai até
seus cd´s, não sabe escolher. Lembra dos mp3, não sabe escolher.
Fica pensando: “já baixei tanta música e não ouvi tudo que baixei. Não
sei por que continuo baixando sem ter escutado a banda anterior a essa que
acabei de baixar!”. José se irrita.
Ele está irritado com ele mesmo. Continua irritado com os outros. Ele
precisa de um desabafo. Não aguenta mais.
Ele tem nojo quando liga a TV. Não é o que ele vive. Tem nojo ao ouvir
o que os jornalistas falam. Não aguenta mais tanta opinião. Não aguenta mais
tantos estudiosos. Todos são melhores que todos. Alguns são piores que os
outros. E José se sente na merda.
Ele quer acreditar nas mudanças. Mas já o pagaram pra participar de
manifestações, levar bandeiras e fazer piquete. Também já viu coronéis o
aliciarem em situações parecidas, fazer o jogo do poder, engolir o sapo. Sim,
José está sem lado. Ele passa pelas bandeiras e não crê.
Então ele põe uma camisa preta na cara e vai com a massa quebrar tudo. E
quando José volta, com marcas da polícia, ele apenas sente que descarregou sua
adrenalina.
José busca a reza, mas as rezas não fazem mais sentido pra ele. Vê milhares
de salas, como se fossem departamentos comerciais, recrutando fiéis. Elas o
chamam. São mais sedutoras que putas.
O cidadão José está cada vez mais fragmentado. Partes do seu corpo têm
necessidades diferentes. Cada pedacinho dele quer algo diferente. Cada tecido
sonha com algo inatingível. O braço direito quer o lado esquerdo, o esquerdo
quer o lado direito. A pleura não quer mais o pulmão.
No meio disso tudo, seu cérebro vai encolhendo. Em meio aos fragmentos
do seu próprio corpo, seu cérebro diminui a rotação. Então ele só pensa em
encolher. E se vê encolhendo. Ele vê seu sonho se realizar. Ele se transforma naquele milho.
Bem naquele milho que sobra no meio da sua própria bosta. Ele se vê na cor da
riqueza. E ele se sente feliz ao puxar a descarga pra ele mesmo.