terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O corvo correio

Chego exausto do trabalho e nada parece ser capaz de tirar minha tranqüilidade. Deito, “está na hora de relaxar”. O som dita o batimento cardíaco. Pensamentos fazem com que eu lembre que estou vivo. O telefone toca e levanto pra atender, acendo a luz e vou a base pegar o aparelho:

- Alô.
- É quem?
- Você quer falar com quem?
- Com o Cristian, ele está?
- Não... deu uma saída e volta logo. Quer deixar recado?
- Não, só diga a ele que o Osvaldo ligou. Fale pra ele se cuidar, cuidar da família...
- A hora que ele voltar eu aviso. Digo pra ele te ligar, me deixa seu telefone.
- Só diga a ele o que eu te disse, tchau!

Desliguei... achei estranha a ligação. Uma voz grave pedindo do meu irmão. Que bosta, ele não mora aqui, por que deu meu número? Por que será?

Mesmo cabreiro apago a luz e fico na cama. Volto ao meu casulo e respiro... só isso.

...

Toca o telefone novamente, eu havia deixado o aparelho ao lado da cama, só peguei e atendi:

- Alô.
- Oi filho, tudo bem?
- Tudo mãe... tudo certo e por aí?
- Aqui também. Aí está frio?
- Hoje nem tanto, está tranqüilo e aí?
- Aqui não, fresquinho só. Aquele ventinho gostoso. Alguma novidade?
- Não. Só um tal de Osvaldo ligou aqui pedindo do Cristian. Achei estranho. Por que ele deu meu número?
- Osvaldo! Nossa... tem certeza?
- Tenho, acabei de falar com ele.
- E o que ele disse?
- Disse que era pro Cristian se cuidar, cuidar da família dele, sei lá... algo assim...
- Hum... mas então está certo filho. Está tudo bem mesmo né?
- Sim... tudo certo.
- Beijos então, te amo.
- Beijos mãe, também te amo.

Desligo e volto ao meu canto. Estranha a tonalidade de voz da minha mãe depois que falei da ligação. Estranha esta ligação, o que este Osvaldo queria com meu irmão? Por que meu irmão deu meu número pra esse cara?

Não tenho tanto tempo pra ficar refletindo sobre isso. Volto ao meu nobre fazer nada, até porque amanhã terei um nobre dia de fazer um pouco de tudo. Esse tempo é algo que preciso melhor administrar.

...

Toca o telefone mais uma vez. Levo um susto! Cochilava!
“Vamos ver quem será”:

- Alô.
- E aí cara! – meu irmão... reconheço na hora.
- E aí... tudo certo?
- Tudo sim... e aí?
- Também.
- Viu... me ligaram aí?
- Sim... um tal de Osvaldo te ligou, achei estranho, não dei teu número daí, não sabia quem era.
- Tá certo... e o que ele disse?
- Então... disse que era pra você se cuidar, cuidar da família dele, da sua... quer dizer da nossa... sei lá... algo assim.
- Como sei lá? Não sabe o que ele falou? – disse em tom mais agressivo.
- Calma cara! Tô dizendo o que ele disse... foi isso e só.
- Como assim! Explique essa história direito.
- Não tem o que explicar, ele te ligou... eu não conheço o cara... pedi se ele gostaria de deixar recado, ele disse o que eu te passei e foi só.
- Ele não disse mais nada?
- Claro que não, você acha que eu não diria?
- Você tem certeza que era Osvaldo? Tem certeza?
- Claro meu! Acha que sou louco?
- Como era a voz dele?
- Era grave, parecia estar com pressa... sei lá.
- Cara... não acredito como isso possa ter acontecido...
- Então porque passou meu número pra esse cara...
- Eu não passei! – disse agressivo.
- Calma... foi só uma ligação... eu disse que você já voltava, daqui a pouco ele liga novamente aí passo teu número daí, tá certo? – dei uma ironizada.
- Eu não sei se ele vai ligar novamente!
- Claro que vai... eu disse que você logo voltava.
- Acontece meu caro, que esse Osvaldo foi aquele meu amigo que morreu no trabalho, num acidente, lembra que te falei? – disse em tom sombrio... e minhas pernas tremeram.
- Como é que é? Está de brincadeira né.
- Não estou... você que está brincando com coisa séria. A única pessoa que conheci com este nome foi ele.
- Nossa... tenho certeza que era esse o nome Cristian!
- Você não está entendendo... se ele morreu faz mais de uma semana... como ele pode ter te ligado?

...

Fiquei calado por um tempo

...

- Pois é né... o que vou te dizer... só sei que ele ligou.
- Daqui a pouco eu te ligo. Ok?
- Ok.

Dessa vez volto ao meu canto, mas não com aquela tranqüilidade. Como que pode... um morto me ligar! Estranho! Mas tenho certeza que falei com esse tal de Osvaldo. Nossa, acho que esse cara não morreu! Puta merda... é o que me falta mesmo.

...

Novamente toca o telefone:

- Alô.
- Viu cara... andei falando com a mãe... é muito estranha essa história... você tem certeza mesmo que falou com o Osvaldo? Era esse o nome dele?
- Claro cara... você acha que eu me enganaria assim... faz pouco tempo que ele ligou.
- Mas meu deus... ele está morto... como pode ter te ligado?
- Eu não sei meu... mas ligou...
- Cara... vai se benzer... vai à igreja...
- Mas ele ligou pra você... não foi pra mim...
- Não estou pra brincadeira... não brinque com coisa séria! – nervoso novamente.
- Não estou brincando. Ele ligou pedindo de você... quem precisa se benzer é você ué...
- Tá bom... já vi que você não tem noção do que aconteceu mesmo...
- O que eu posso fazer... se o morto me ligou porra?
- Vou desligar... mais essa mesmo... puta merda...
- Puta merda digo eu... tá doido...
- Tá bom... até mais...
- Até...

Era o que me faltava agora. Quando estou sossegado sempre tem algo me enchendo e dessa vez um morto? Qual é... e agora minha consciência apita... “mentiu pro morto mentiu pro morto”.

...

Meu trajeto pro trabalho passa num grande cemitério, durante o dia é bonito ver aqueles túmulos juntos, parecem formar uma cidade antiga. Na volta de mais um dia de fadiga, já à noite, resolvo parar um ponto antes da concentração de almas penadas e ver se encontro Osvaldo por lá.

Saio do ônibus e caminho pela rua. “Não está tarde acho que ele não deve estar por aí” – penso com meu medo. Acredito que se as almas penadas percorrem os cemitérios, devem vagar nas proximidades da madrugada, junto com os gatos de rua e o silêncio das sombras.

Por isso resolvi quebrar a esquina e subir umas três quadras. Entro num boteco de blues, acendo um cigarro e fico pensando nesse tal de Osvaldo. “Qual é a desse cara?”. “Se falei com o morto e estou vivo o que eu sou? Uma ponte do além que manda recados? Um corvo correio? O que esse morto está pensando?”. Estava meio transtornado, não conseguira parar de pensar na chamada.

Tomo várias cervejas e rango uns espetinhos de alcatra. “Estou chapado já, é ora de sair e achar essa sombra. Vou resolver essa parada”. Pago... e ao som do velho Buddy Guy pego a rua em direção ao cemitério mais próximo. “Não espere que eu seja bonzinho com você sua alma penada” – penso roendo meus dentes. Lanço a bituca, termino a cerveja em lata que peguei pra acompanhar a caminhada. Lá vou eu...

...

Não fui feliz na minha empreitada pelas sombras. Não encontrei Osvaldo. Ele devia estar em outro cemitério. Fiquei um pouco desolado.

Esperei ele retornar a ligação. Queria dizer que menti por conveniência, nada muito sério.

Afinal, dei o recado...

...

Depois disso lembrei que às vezes recebemos ligações e passamos o velho migué... “o fulano não está... o fulano deu uma saída e já volta... depois te liga...”. Dessa vez não teve jeito... ele sabia de tudo!

Será que receberei uma punição por isso?

Depois que Osvaldo me ligou, fiquei com um pé atrás sobre as velhas mentirinhas de conveniência... até hoje tento mudar... confesso que só às vezes tento.

Mas também... se fosse tão importante o Osvaldo retornaria a ligação.