terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Professor (Capítulo Final)

Meus olhos parecem estar em chamas! Está quente minha cabeça. Como se fizesse um esforço, abro minhas vistas e logo percebo que uma fresta na janela deixou os raios solares entrar. Estrategicamente eles batem na cara.

Viro minha cabeça pro lado. Percebo que algo percorre minhas veias. Estou com uma sensibilidade maior. Sinto a textura do lençol. Olho pro teto, tinta branca, as quatro paredes se mexem. Meus móveis não são tão móveis assim.

Ao tentar sair da cama percebo o efeito do chá. Minhas pernas estão fracas. Faço um movimento abdominal pra move-las e me posicionar sentado no colchão. Coloco meus pés no chão e não tenho a firmeza habitual. “Ótimo... era o que faltava mesmo!” – penso confuso sobre minha situação.

Faço muita força e me coloco em pé. Tento me equilibrar e, bem devagar, me movo. Pra isso tenho que arrastar meus pés um ao lado do outro, como se contasse minhas próprias pegadas. Assim vou até a porta. Consigo sair do meu quarto e caminho – pelo corredor – em direção a sala do apartamento onde moro.

O barulho dos meus próprios pés que se arrastam deixa certa agonia. Tsi tsi tsi tsi tsi... com as mãos na parede e meus pés mortos me locomovo. “Que porra é essa?” – já com certa raiva vou lentamente até o sofá e deixo-me cair.

“Que sensação ‘cabulosa’! O que é isso? Que merda de chá é esse?”. Meus pensamentos levam-me a uma bad trip. Olho no canto da minha sala, em cima de uma prateleira está à caveira de um boi, seus chifres, sua cara de morte. A caveira parece fazer suaves formas, nada que me assuste, apenas mostra que o efeito lisérgico é real.

...

Essa caveira de boi foi parar na minha casa quando dividia este apartamento com um nobre colega que era do interior. Não apenas uma cidade do interior, mas morava num sítio. Com sua humildade e coração bom, um dia me trouxe de presente essa cabeça de boi. Quando chegou, levei um susto com o presente, mas após ele falar: “trouxe pra você, estava lá no sítio, ninguém sabia o que fazer com isso. Então lembrei ‘desses’ rock do capeta que você escuta e trouxe de presente. Legal né?” – fiquei sem resposta diante do brilho nos olhos do nobre colega; era como se ele prestasse um serviço pro rock n roll. Então Abracei a caveira e coloquei no topo da nossa sala.

...

Em pouco tempo a porta do outro quarto se abre. “Estava na hora desse filho da puta levantar!” – pensei puto. Onde morava havia três quartos, mas ficava praticamente sozinho. Meus colegas com frequência viajavam.

Tsi tsi tsi tsi... um barulho de pés que arrastavam-se no meu corredor. Não tive a mínima vontade de ver, apenas esperei Catarina – meu amigo – surgir. Então ele vem na mesma situação que a minha, com os braços escorados na parede, apenas sua cara com um sorriso largo!

- Ei! Você não está sentindo suas pernas direito?
- Não cara! – respondi assustado...
- É normal cara (deu uma gargalhada). Eu disse que o negócio ia pegar, não disse?
- Porra cara... o que é isso... eu não quero ficar sem sentir minhas pernas! Que merda é essa? Vai passar logo?
- Claro... daqui a pouco só vai sobrar a pira na visão!

...

Essa pira na visão que Catarina se refere são os efeitos que a luz proporciona. Ele havia comentado que seria assim, além de omitir a parte inicial do efeito.

...
Tudo começou quando eu e o Catarina estávamos num bar. Comentei sobre a bebida Jurubeba. Pedi uma dose. Então ele me disse que havia tomado o chá, que era legal a pira. Eu fiquei curioso obviamente. Continuamos a beber e não se falou muito mais nisso.

Um outro dia, Soares me ligou e comentou que havia comprado algumas gaitas de boca. “Vamos fazer um som lá na casa que eu estou morando?” – “Vamos” – respondi. Combinamos o dia e chamamos o Catarina também.

Soares tocaria gaita e violão, eu guitarra e Catarina baixo. “Só não podemos apavorar no som, porque no terreno que moro minha avó mora nos fundos!”. Não discutimos, apenas fomos lá pra tirar uma onda.

O som ficou um lixo. Eu e o Catarina não acompanhávamos o gosto musical de Soares. Amizades a parte, mas não daria muito certo. Um com feeling mais pop, outro mais técnico; já eu... bom... só feeling mesmo.

Fumamos mais erva que tocamos. Trocamos mais ideia que testamos as gaitas do Soares. Enfim... é aquela velha resposta: “fizeram muito som?” – “som não muito... mas fumaça!”. Foi por aí, segundo Soares a sua avó não percebia o cheiro da erva, mas se incomodava se fizesse barulho.

Na saída Catarina viu umas plantas e disse:

- Olha cara... aquilo é Jurubeba!
- Sério? – fiz aquele pergunta estúpida.
- É o que? – perguntou Soares.
- Jurubeba, uma planta. Dá pra fazer um chá. Tomava lá em Floripa!
- Credo... eu não vou tomar isso aí – disse Soares.
- Então não toma... o cara só toma chá de cogumelo... é bico fino... – brinquei.

Risadas a parte, convencemos Soares a chamar sua avó pra pegarmos umas folhas.

- Claro... pode pegar... nem sei que planta é essa – disse a avó do Soares.

Então Catarina foi até a Jurubeba e trouxe várias folhas. Levamos pra casa.

- Vocês tem certeza que vão tomar isso? – questionou Soares.
- Claro! – foi enfático Catarina.

Eu queria experimentar. “Vamos ver o que isso vai dar!” – pensei.

...

Quando colhemos era sexta feira. Horário de verão. Saímos do trabalho e fomos até a casa do Soares. Antes de escurecer já havíamos parado de tocar. Vamos dizer que chegamos seis e pouco da noite pra fazer o som e não eram oito horas quando paramos.

...

Já havia passado das dez da noite, compramos cerveja e tínhamos erva. O chá estava pronto. Diz meu camarada: “esse ‘tá’ concentrado!”.

Tomamos enquanto escutávamos um som. E foi assim... o tempo passou, a cerveja e a erva fizeram efeito.

- Porra meu irmão... que merda é essa? Chá de camomila?
- Estranho, já devíamos estar muito doidos cara! Não sei o que houve!
- Eu sei o que houve! Você se enganou com a planta, porra!
- Será? Não não... tenho certeza...
- Não sei... mas esse chá de Jurubeba dá é sono...

...

Depois disso, acordei com o sol na minha cara.

...

- Eu falei que era Jurubeba.
- Porra cara... que horas são?
- Pois é... tenho que trabalhar!
- Eu também...
- Porra cara... não estou em condições de trabalhar...
- Eu também não...
- Hum... nove horas. Entro às dez. Que horas vais trabalhar? (às vezes ele tinha um sotaque catarinense... do nada ele soltava algo).
- Não tenho horário... tenho uns lugares marcados pra visitar. Combinei com o cara pela manhã... não disse o horário...

Aí já foi o primeiro momento em que demos risada. O efeito do chá havia mudado. Minhas pernas e meus pés estavam normais.

- Cara... tente ler isso... – e me entregou a lista telefônica.
- Caralho véio... que merda é essa...

Não tinha explicação. As letras se moviam. Os números também.

- Você não vai conseguir ler nada... não importa o tamanho... se chegar num outdoor... não vai conseguir...
- Sério cara... duvido.

...

Quase dez horas, saímos de casa. Catarina foi pro trabalho dele e eu tinha que passar na empresa que trabalhava. Na época (2003, Cascavel - PR) a internet não era muito utilizada pelas empresas com finalidade. Porém vendíamos sites.

Conquistamos alguns clientes, mas a história da Fábrica 01 não teve final feliz - o que não vem ao caso agora.

...

Já no escritório, estava o webmaster e o cara que liga pra agendar visitas: ‘Quati’ – seu apelido – que já adiantou que minha visita fora cancelada.

- Porra Quati... por que não me ligou?
- Não é bem assim... vai pra rua atrás de empresa – disse Fabão.

Fabão, Jordano e eu montamos a empresa, tínhamos que dar exemplo. Então peguei a lista telefônica, involuntariamente, pra ‘encontrar’ possíveis clientes.

Percebi – depois de não sei quanto tempo – que os dois olhavam pra mim de uma forma estranha.

- O que você ‘tá’ fazendo aqui ainda? – perguntou Fabão.
- ‘To’ vendo umas empresas pra ir porra.
- E o catálogo que você tem sempre na sua bolsa, vive dizendo que tem tudo e bla bla bla... enfiou ele no cu? Porra... vendedor tem que ‘tá’ na rua... – mais um dos surtos do meu ex-sócio.
- Calma véio... to indo nessa...

...

Na rua... realmente não lia os letreiros e porra nenhuma. A luz do dia juntava tudo. Todas as imagens se formavam. Eu estava num outro planeta. Podia ser atropelado, trombar com alguém conhecido e não reconhecer... esse tipo de coisa. Nada disso aconteceu.

Então avistei uma empresa. Uma porta grande. Entrei e procurei alguém pra me atender. Não encontrei ninguém! Percebi que estava no escritório e que havia outra sala no estabelecimento. Fui...

- Ei ei... ‘tá’ indo aonde? – uma voz surgiu do nada.

Parei... olhei pro cidadão... ele enxugava as mãos – todas cheia de graxa.

- Posso ajudar? – ele me perguntou.

Percebi que estava numa mecânica. “Que porra... o que um mecânico vai querer com um site? Que merda”. Observei sua sala... lembro de um chapéu no canto, em cima de um banquinho... o mecânico tinha uma cara meio embaçada (acho que minhas condições apontavam pra isso), mas pude perceber uma barba por fazer, uma cabeça calva, sapatos comuns, calça jeans e camiseta escura.

Minha boca havia travado. Tirei de dentro de mim algo pra falar... e saiu do fundo da minha espontaneidade, uma tentativa de sair dessa situação:

- É... bom... eu trabalho na Fábrica 01... e...
- Fábrica o que?
- 01... é... nós fazemos site... sabe como é?
- Hum... já ouvi falar...
- Da empresa?
- Não... desse tal de site aí...
- Hum... entendi... então... é o seguinte...
- Cadê o carro? – essa pergunta me quebrou as pernas...
- Não... é que... olha só... estou aqui com uma propaganda... deixe aí contigo... caso alguém traga o carro aqui... sabe como é... você atende bastante gente de empresa grande e tal?
- Atendo...
- Então... nós fazemos site, aqui está a tabela de preços e o que produzimos. Como você pode ver (fui mostrar nossos produtos, mas não enxergava porra nenhuma das letras, valores... sabia de cabeça... mas minha cabeça não sabia de nada... muito menos eu!). É... só vim aqui deixar isso... deixe aí... em cima da sua mesa... se vier um conhecido você mostra pro cara... pode ser?
- Pode... deixe aí em cima – me olhou desconfiado. Só tirou o olho de mim quando eu saí da mecânica.

...

Decidi não voltar a minha empresa. Fui direto pra casa. O percurso foi recheado de gargalhada. Não conseguia me controlar. Depois do bote errado numa mecânica, doido de Jurubeba, é só pra rir mesmo.

Quando cheguei, fui até meu quarto. Gargalhava sem parar. Meu abdômen chegava a doer. Olhei na minha estante, meu caderno aberto e uns manuscritos. Em letras garrafais. Como estava muito doido, não consegui ler...

“Que porra é essa?” – pensei comigo. Alguns manuscritos que tentei decifrar. Então recuperei a memória. “Foi um sonho?”. Lembrei do chá, da entrevista, da educação... de tudo! Da seita! “Será que isso está escrito aqui?”.

Folhei meu caderno, havia algumas páginas. “Se eu escrevi... então não foi um sonho?”.

...

Caminhei mais um pouco pelas redondezas da região onde morava. Senti o sol fritar. “Acho que o efeito passou!”. E foi súbito realmente. Voltei pra casa e estava um pimentão. Vermelho pra caralho. “Que merda!” – minha cara ardia.

Tomei um banho, senti um forte cansaço, esqueci de tudo e dormi.

Raramente lembro um sonho e dessa vez não foi diferente. Quando acordei, enrolei um pouco na cama até que me veio à imagem do manuscrito. Levantei da cama e fui ver o que havia passado pro papel.

Sabe quando o que você escreve te chama pra ser lido? Foi assim. Fui até o manuscrito. Dessa vez eu não estava doido, mas minha letra era ilegível.

Botei as duas mãos na cabeça. Folhei várias vezes, de trás pra frente, de frente pra trás... nada...

A única coisa que consegui decifrar foi o título: O Professor.

...

Durante a semana recebi ligações de pessoas interessadas em fazer um site. Fui vender nosso produto.

- Como conheceu nossa empresa? – perguntava curioso.
- Meu mecânico mostrou... – ouvi mais de uma resposta dessas...

...

Depois de noites na tentativa de decifrar o que havia escrito, resolvi jogar O Professor no lixo... também lembrei de agradecer o mecânico que me indicara, pois é questão de respeito, educação e humildade ir até as pessoas que de alguma forma o ajudam.

Cheguei por instinto até a mecânica. Esperei o trabalhador sair. Quando olhei pra ele... de alguma forma... não sei bem explicar... ele me pareceu familiar. O agradeci pelos contatos, ele nem deu muita bola.

Fiquei surpreso, mas ele chegou a convidar-me pra tomar ‘umas’ ali mesmo na mecânica qualquer dia desses... ele disse que tinha um grupo de amigos, inclusive os que ele me indicou, que participavam das ‘reuniões’ – termo que ele usou: “quando quiser é só aparecer nas nossas reuniões!”.

Após olhar pra ele, senti certa familiaridade, mas no sentido assombroso... minhas pernas chegaram a tremer... senti até calafrios. Então caminhei com passo apressado, mesmo com a percepção de que era observado!

Senti que alguma coisa sinalizava pra não olhar pra trás... e não olhei.