terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Larroy em: “Um dia de fúria”

Larroy estava mais que estressado. Também, depois de trabalhar anos numa empresa de pesquisa e tecnologia em desenvolvimento de soja transgênica, foi demitido sem explicação. Após a presepada foi pra casa desfigurado, era o ataque de nervos em pessoa, me disse ele.

Bom... quando ligou logo percebi que o tom da sua voz estava estranho. Eu como colega de Larroy, resolvi preparar uma diversão pra amenizar seu sofrimento. Então lembrei de algumas travessuras que fazia e resgatei isso pra que meu nobre amigo soltasse seu grito de liberdade.

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“Ora Larroy, você me liga enchendo o saco, choramingando e tudo mais... e agora está regulando o carro? Vamos lá... você vai se divertir”, explicava pra meu nobre amigo que precisava do carro emprestado pra fazer umas visitas e proporcionar um dia mais interessante em sua vida. Dedicou tanto tempo em prol do desenvolvimento tecnológico de nossas lavouras produtoras de alimento, que esqueceu a chamada diversão inconseqüente.

“Tá bom tá bom... passa aqui e pega, mas vê se não demora!”, disse meio contrariado Larroy. Fui até a casa do meu mais bem sucedido camarada e peguei seu carro. Fiz umas visitas a outros nobres amigos, já estava tudo esquematizado.

Quando voltei à casa de Larroy era só embarcar e sair por aí. “Bom Larroy, hoje você está a bordo, não diga nada, apenas se prepare pra descarregar seu sofrimento, vamos fazer barulho!”, e arranquei rumo à liberdade.

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Uma pessoa demitida muitas vezes está aberta a novas experiências. Aproveitei-me desta situação pra fazer uma boa ação. Afinal nos dias de hoje como viveríamos sem algumas fugas da realidade, não? Estava triste pelo fato do meu nobre camarada ter perdido emprego, até porque é um ótimo profissional. A injustiça me deixa indignado.

Larroy me explicou que essa crise americana afetara toda a cadeia produtiva mundial, que as coisas não estavam bem na empresa em que trabalhava. Então houve dispensas. Era isso que ele dizia.

Porém eu sabia que o buraco era mais embaixo. Larroy não é o tipo de pessoa que abre as pernas em serviço, estava num formigueiro, num ninho de serpentes, levava tudo no profissionalismo, como deve ser, mas após as eleições municipais algumas coisas normalmente mudam.

Através de alguns contatos descobri que meu nobre amigo fora demitido devido ao ingresso do mais novo “cientista” especializado no que há de mais "novo" no mercado tecnológico moderno, o chamado Q.I. (quem indica).

Então o filho de um grande produtor da região precisava de um trabalho, pois não fazia nada mesmo, aí acharam uma vaga. Sobrou pra quem? Pra quem trabalhava... meu amigo foi convidado a se retirar. Mesmo recebendo tudo de acordo com a lei, Larroy estava com seu ego, devido ao longo serviço prestado, abalado.

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“Se prepare meu nobre amigo, as coisas serão divertidas a partir de agora”, disse pra ele e acelerei seu carro em direção ao interior, direto aos campos de lavouras e belos sítios, alguns com belas reservas de mata, outros com uma bela mata morta. É assim mesmo.

Peguei um cd, inicialmente do Circles Jerks. Era a trilha do momento pra Larroy. Em meio a raiva nada melhor que aguçá-la. “Desliga isso pelo amor de deus!”, gritava Larroy. “Cala a boca e escuta... isso é ópera parceiro... ópera pra introduzirmos o holocausto”, gargalhei com o desespero de Larroy.

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Na estrada de chão o carro do meu amigo voava. Longas retas e pista livre. O som estava rasgando nossos ouvidos, meu amigo olhava pra mim e pra estrada, esbugalhava os olhos. Vendo a cena pergunto se aquele é o dia certo pra morrer. Larroy disse: “Nãoooooooo!”.

Tarde demais pra dizer isso meu camarada. Acelerei pra 140, o som empolgava. O carro do meu nobre amigo segurava bem a minha onda.

Conhecia aqueles trajetos, percorri o interior quando estava num outro emprego por aí. Larroy já estava a fumar meus cigarros. “Grande Larroy, fuma aí parceiro!”, ele não respondia apenas aflorava seus tiques nervosos. Muito engraçado olhar pra ele e ver que quando piscava, mexia também o canto da boca.

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Avistei o sítio que queria, parei o carro num ponto estratégico. Dei mais um gole de cerveja. “Você está bebendo demais”, disse Larroy pra mim. “E você de menos!”, retruquei. Fui ao porta malas, o abri e peguei dois estilingues. Passei um pra Larroy. “Vem comigo”... e saí embrenhando um pequeno bosque que tinha nos arredores do sítio.

- O que estamos fazendo aqui? De quem é esse sítio?
- Calma Larroy, vem comigo parceiro.
- Você está completamente descontrolado seu retardado.
- Larroy... vamos lá cara... deixa de ser chato.

Meu amigo calou-se, melhor assim. Eu queria silêncio. Queria fazer isso novamente e dessa vez além de ser uma simples atividade regional, estaria proporcionando algo inédito pro nobre Larroy.

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Paramos em frente ao chiqueiro do sítio por vias diferentes, mas o fim era lá mesmo. Deparamos-nos em frente a um monte de cachaços, com aqueles sacos gigantes. Entreguei a Larroy umas bolitas... “vamos começar a diversão”, disse.

A segunda trilha sonora! Peguei meu estilingue, carreguei e disparei à primeira. Tiro certeiro, bem nas bola do cachaço. Ele soltou aquele grito... “mentaliza Larroy, veja no saco do cachaço as bolas do seu patrão... manda ver meu chapa”.

Larroy não havia atirado de estilingue ainda, sempre esteve ligado ao computador e não ao regionalismo, vamos assim dizer. Preparou a primeira, me olhava contrariado, ajeitou seus óculos e mandou ver. Me surpreendi, realmente Larroy tinha talento pra coisa. Tiro certeiro e o cachaço soltou mais um berro.

“Esse patrão de merda vai ver só o que é bom”, disse Larroy pra mim com os olhos cheios de cólera. Colocou mais uma bala na agulha e mandou ver. Grito. Eu também mandei ver. Grito. “Vamos lá! Vamos lá!”, gritava meu nobre amigo. Os cachaços gritavam enquanto disparávamos.

Os olhos de Larroy brilhavam, ele não parava mais, parecia uma metralhadora. Cada grito do cachaço era como se meu amigo enfiasse uma faca no seu ex-patrão, realmente minha missão estava sendo bem sucedida.

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Uma movimentação estranha. Escutei latidos de cachorro. “Vamos Larroy, temos que ir!”... “Espera... só mais uma!”... “Vamos!”... puxei meu amigo, pois alguém se aproximava.

Voltamos pro bosque correndo o que podíamos. Tropeçávamos em troncos, galhos, espinhos, mas nada podia nos parar. Chegamos ao carro, no porta melas joguei nossos estilingues. Agora nossa trilha é Dead Kennedys, eles nos levarão ao próximo destino.

“Nossa... estou cansado... me dá uma cerveja”, disse Larroy. Mostrei a ele a bolsa térmica no banco traseiro. Ele pegou, abriu, deu um grande gole e acendeu um cigarro. “Esse não é o Larroy que conheço”, pensei com meus botões.

“Anda mais rápido!”, pediu Larroy. Por um momento fiquei em estado de choque, mas já que tocava “Drug me”, Jello Biafra berra mais que um cachaço, tive que pisar fundo.

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Numa encruzilhada reduzi, dei uns três zerinhos, levantei poeira, Larroy gritava e erguia sua lata de cerveja como se fosse um troféu. Parei o carro. “Ei... vamos lá... o que foi?”... “Calma aí cara, o segundo ato da nossa peregrinação vai começar”.

Do porta malas tirei duas doze canos serrados.

- Meu deus! Eu nunca tinha visto um negócio desses?
- Calma Larroy, agora sim que o bicho vai pegar.
- O que vamos fazer?
- Vai vendo...

Preparei as armas, entreguei uma pra Larroy. “Chega aqui”, disse pra ele. Caminhei até o meio da estrada, deitei no chão em posição de soldado no front, o alvo na mira. “Deita”, disse pra Larroy. Ele sem contrariar foi pro chão.

“Bummmmmm”... fiz o primeiro disparo contra soja que nos cercava. Abriu um clarão na plantação. “Manda ver Larroy!”. “Bummmmm”... outro clarão... a gargalhada de Larroy era empolgante... eu disparei outro e ele também... abriu mais ainda a lavoura. “Imagine que essa propriedade é do seu patrão Larroy!”.

“Carrega mais, carrega mais”, os olhos de Larroy brilhavam igual uma criancinha ganhando presente de natal. “Calma... vamos pra outro ponto estratégico” e só viramos o lado, ainda no meio da estrada. “Agora você vai ver o que é bom”, disse Larroy e mandou mais chumbo. O tiro do meu amigo levava toda a revolta da injustiça, estava com toda raiva acumulada e precisava liberar.

Armei mais vezes pra ele. Atiramos umas quatro vezes cada um, até que acabaram os cartuchos.

- Por que você não trouxe mais?
- Se liga Larroy, está bom... vamos nessa. Já abrimos um clarão. Temos que pisar fundo agora.
- Vamos lá!
- Vamos lá! - a sugestão foi aceita. Hey hoy... vamos lá. Com Ramones voltamos, depois do nosso ataque relâmpago regional.

...

Parei em frente a minha casa, havia guardado nossas armas numa bolsa, então saí, com meus cd’s me despedi de Larroy e subi as escadas. Meu amigo estava com os olhos brilhando, um momento eufórico. Nunca havia visto uma pessoa se divertir tanto fazendo algo tão sem noção.

No caminho de volta, quando escutávamos Ramones, o silêncio de nossas conversas, a velocidade, a paisagem, tudo isso se juntou e deixou que nossa mente trabalhasse enquanto tomávamos cerveja e fumávamos.

Olhava Larroy e via seu sorriso. Ele mexia seus óculos e arrumava sua camiseta, como se fosse resolver o problema de estarmos sujos de terra e machucados da corrida no bosque. Realmente aquele momento foi legal.

Larroy é bem sucedido, não precisa de favores, muito menos de pessoas como eu ao seu lado. Sempre foi a responsabilidade em pessoa, com grana e o mundo aos seus pés. E hoje ele me surpreendeu!

Não pelo fato de ter feito algo sem noção ou por ter aceitado me deixar dirigir seu carro, botar a trilha sonora, beber e fumar no seu recinto.

A grande surpresa disso tudo foi na hora que entrara no prédio onde moro, Larroy me chamou e disse:

- Ei amigo! Obrigado.