terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O COVEIRO

Capítulo Final: Feliz natal - O capitalismo é deus. Jesus é o dinheiro



Existem várias formas de renascer. Todas em vida. Existem várias formas de morrer. Todas em vida.

...

Já no táxi, o Coveiro e o taxista vão em direção ao lugar escolhido: 

- Por favor, eu tenho uma pequena propriedade em Morretes. Não se preocupe com o valor da corrida, apenas preciso chegar lá antes do natal. Será que você consegue?
- Mas é claro! O natal é amanhã. O espírito natalino está no ar! Chego lá loguinho loguinho. 

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"Com essa corrida vou ver umas querida na zona. Esse idiota vai precisar desembolsar muita grana. Ou eu mesmo jogo ele no rio Morretes. Babaca filha da puta!" - pensava o taxista. 

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- Pois é, amanhã é natal. Algo em especial pra comemorar? - perguntou o Coveiro. 
- Muita coisa. Esse ano ganhei grana pra caralho. Não igual um político, mas não posso reclamar. Consegui comprar uns presentinhos pra minha família. E também tenho umas reservas pra me presentear. 
- É mesmo, que bacana. 
- Essa época você enche as pessoas de presente. É sempre assim. Minha mulé, por exemplo, reclama o ano todo de mim. Chega nessa época do ano, eu compro um monte de bugiganga pra ela e a paz reina. Pelo menos uma vez por ano a paz reina lá em casa. Acho que o espírito de Cristo. 
- Pode ser... 

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"Cristo, aqui no meu lugar, abriria um buraco na barriga desse filha da puta. Jogaria ele na vala. É isso que eu vou fazer. Iniciarei a justiça divina na véspera do seu nascimento" - pensou o Coveiro. 

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- O que você vai fazer em Morretes?
- Vou visitar uma pessoa. 
- Entendi. Uma pessoa né? Uma pessoa com dois peitões e uma boceta. HAHAHAHA...
- É. Mas lá o buraco é mais embaixo, se é que você me entende. 
- É um travecão? 
- Não não... que é isso rapaz? Me respeite... 
- Ah... você disse: o buraco é mais embaixo... vai saber né! Hoje me dia tem pra todo gosto. Eu mesmo já furei uns e outros aí. 
- Já furou como? Gosta de traveco também? 
- Não não... furei com faca mesmo. Furei esses desgraçados. Bando de safados. Bicha, preto, nordestino... tem que morrer tudo... 
- É esse seu espírito natalino então? 
- Nunca vi essas raça aí ter espírito natalino. Tudo um bando de ignorante. Tem que morrer tudo... 
- Você tá falando sério mesmo? 
- É claro! 

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"Agora esse bicho estranho ficou com medo de mim. Assim eu coloco respeito na parada. Essa viagem precisa ter um cabeça. E o chefe sou eu" - o taxista precisava se impor de alguma forma. 

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- Bom, não concordo. Vamos fazer assim. Recém saímos de Curitiba. Quando estivermos na entrada de Morretes você me avisa. Que vou tirar uma soneca. Ok?
- Claro. Vai em frente. 

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"Então Cristo nasceu. Junto com ele surgem várias exigências. Se essa data fosse mesmo verdadeira, você jamais precisaria desembolsar todo seu suor em coisa materiais. É nessa época do ano que as pessoas parecem tão generosas! É só passar uns dias que a normalidade estúpida volta. Não existe amor no natal. Nem aqui, nem em qualquer outro lugar. 

O espírito alegre é visto em todas as famílias. Até mesmo nas mais problemáticas. Por um instante eles querem que você acredite. Então grupos de amigos vão até regiões pobres e fazem doações. Casais que se odeiam decretam paz momentânea. Famílias separadas se unem pra encher a barriga de comida. As lojas ficam cheias e os presentes são cada vez mais variados. As marcas cada dia mais atendem o consumidor. O consumidor é preparado o ano todo pra chegar nessa época e tomar um rasteira do consumismo. 

A cultura com preço e prestações está estipulada. Está consolidada. A ganância está a solta. Dizem que é um espírito que vem pra trazer paz. O nascimento do "prometido". Se isso fosse verdade. Esse dia seria o dia de todos os revoltados se revoltarem. O dia em que todos lutariam por direitos universais.  

Mas isso é uma farsa. Assim como todo o resto que é contado por aí. Na vida sofrida das pessoas, o sacrifício é refém de uma prática capitalista. Esse é o sistema. O capitalismo é deus. Jesus é o dinheiro. Você já foi enganado. Não há mais volta. As famílias praticam isso. Acreditam nisso. As pessoas esperam por isso. Depositam sua felicidade em coisas materiais. No ocidente é de um jeito. Em outros lugares de outro. Nada tão diferente, além de algumas datas e símbolos. 

Você vai comer tudo do bom e do melhor. Milhares não comerão nada. Você irá sorrir. Milhares chorarão. Você irá se embriagar. Milhares não terão o que beber. Você enfeitará sua casa com luzes. Milhares não têm luz no fim do túnel. Você usará a sua roupa nova. Milhares repetirão a mesma roupa de sempre. A sua vida cheia de badulaques é uma farsa. A vida faminta de milhares é verdadeira". 

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Num súbito momento, o Coveiro acordou. 

- Chegamos? 
- Cara... você é um bicho estranho mesmo. Bem na entrada de Morretes acorda! 
- É... sou um cara de "sorte" mesmo. 
- Você é daqueles que não precisam de despertador pra acordar, não é? 
- Isso mesmo. 
- Então... entramos na estrada que entra em Morretes. Qual é o caminho? 
- Siga em frente. Vai chegar numa estrada de chão, a terceira entrada. Beirando o rio. 
- Ok. 

...

Ambos seguiam de carro. Um momento entre duas pessoas poderia ser melhor aproveitado. Se o taxista não fosse um alvo. O coveiro não interage com suas vítimas. É seu instinto. 

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- Viu senhor, por aqui não tem mais nada - disse o taxista já desconfiado. 
- É claro que tem. Logo chega uma pequena estrada que beira o rio. Seguirá por ela e chegará na minha pequena propriedade. 
- Tem certeza que sabe por onde está indo? 
- Sei. 
- Tudo bem. Está vendo o taxímetro não é? É isso que interessa pra mim. 
- Eu sei o que interessa pra você. Você é que não sabe o que interessa pra mim. 
- Ok. Vamos em frente. 

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"Sim meu pai. Eis que chega a hora. Eis que recomeço minha vida". 

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- Vire nessa rua. 
- Não tem nada por aqui, onde você quer chegar com isso. 
- Acho que errei! Por favor faça a volta. 

...

No momento em que o taxista se preparou, com dificuldade, pra manobrar seu carro, o Coveiro tirou uma pequena faca que sempre carrega num coldre amarrado perto do tornozelo. Passou a faca no pescoço do taxista. 

Não foi uma morte sofrida. Pro justiceiro, a morte tinha que ser dessa forma, pra não prejudicar a carne. A terra não poderia receber carne assustada. Então a morte deveria ser assim, suave, sem desespero. 

Com o corpo ainda quente e o sangue jorrando, o Coveiro apenas deixou o carro seguir, em marcha ré, rumo ao rio. Somente abriu a porta e saiu do carro. Sem dificuldade. 

Agora uma pequena caminhada pela estrada em direção ao ponto do ônibus de linha. 

...

"A sensação de liberdade! Será que foi isso que sentiu Cristo quando lutou contra a hipocrisia? Será que foi isso que Jesus sentiu quando entrou no sistema corrupto e agrediu todos os que mereciam? Quando criticou o excesso e a corrupção? Não sei. Só sei que a justiça tem uma sensação. Indescritível. Uma sensação de liberdade. É imaterial. Não vem através de uma reza. Não vem através de uma compra. Não vem através de dinheiro. Ela aparece em forma de ação. Uma ação em benefício de todos. Uma ação em benefício da verdade. Uma ação em benefício de todas as outras ações. E foi nessa ação que Jesus renasceu em forma de coveiro".