terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Filosofia cotidiana é no boteco

Quando se vai a botecos com certa frequencia é normal fazer amizade com garçons e até com os proprietários. Você chega e toma uns goles, aí outro dia você faz o mesmo e assim consequentemente. Após algum tempo as histórias vividas tanto por nós que frequentamos, como por quem trabalha no boteco são compartilhadas.

Fazemos o que alguns filósofos chamam de dialogismo do cotidiano, algo ligado a antropologia. Eu prefiro dizer que são as chamadas vozes das ruas ou mesmo filosofias de boteco.

...

- E aí... aquela Antártica gelada parceiro – e lá vai o garçom trazer meu líquido.

Enche meu copo sem colarinho, como eu prefiro. Percebi depois de ele encher que ficou por ali mesmo. Estava inquieto. Apertava sua toalha que limpa as mesas contra as mãos.

- Então... e sua moto... arrumou?
- Não... nem estragou tanto no acidente.
- Só você que se ralou um pouco né... rs...
- Pois é cara... saí atrasado do meu outro trabalho e fui pra casa tomar um banho. Saí chutado de casa e deu no que deu... ainda bem que não aconteceu nada comigo...
- Nem com o véio né...rs...

...

Essa história foi complicada. O garçom mandou um véio pro meio do canteiro da avenida principal. Ambos só se ralaram.

- Mas então está com a moto ainda?
- A cara... nem estou mais... tive que praticamente entregar ela por aí...
- Como assim?

...

Quando o papo rola naturalmente o tempo voa. O jovem garçom pediu que eu esperasse um pouco, pois havia de atender outras mesas. Lógico que eu consenti, afinal... quem está no trabalho é ele e não eu...

...

O jovem volta com a corda toda.

- Então... você não tem noção do que aconteceu comigo... tive que mandar meu pai entregar a moto pra um advogado aí.
- Como assim?
- Um dia saí do trabalho aqui, eram umas duas e meia da madrugada, eu estava a pé nesse dia. Perto da minha casa encontrei uns três caras. Logo vi que eles eram sangue ruim entende...
- Sei como é...
- Eles me chamaram pra conversar. Não tinha pra onde eu ir... nem cheguei a trocar duas palavras com eles, logo a política chegou. Deram uma geral neles e encontraram umas roupas que haviam arrombado numa loja.
- E aí você entrou no negócio?
- Sim... isso numa quinta a noite. Os caras disseram pra polícia que eu não tinha nada com aquilo, mas a polícia nem escutou. Fiquei de quinta a domingo guardado. Apanhei a madrugada toda. Quando eles me perguntavam algo, a hora que eu ia responder tomava porrada. Levei chute na boca, nas costelas... tomei um cacete que você não imagina.
- Você tá brincando comigo cara...
- Meu... só consegui sair depois de pagar fiança! Minha moto foi pra isso e pro advogado, além de mais um pouco que meus pais tiveram que dar.
- Mas o polícia deixou você guardado lá todo esse tempo? O dono daqui não fez nada?
- Escreveu uma declaração dizendo que na hora do roubo eu estava trabalhando, mas não adiantou nada. Eles me deixaram lá até domingo. Apanhei igual um cachorro, comi lavagem... a pior comida que você pode imaginar.
- Nossa irmão... que coisa sinistra isso...
- Você não tem noção da raiva que eu tenho, dois trabalhos que eu faço, os dois não me pagam muito bem... nem havia terminado de pagar minha moto e agora to sem nada...
- E ainda tomou o maior cacete né...
- Meu... você sabe o que é passar uma semana chegando em casa e chorando de raiva... você não tem noção da revolta. Eles sabiam que eu não tinha nada a ver... mas mesmo assim desceram o cacete em mim... fiquei quatro dias preso sem ter feito nada.
- E os outros caras?
- Estão guardados ainda...

...

As coisas são esquisitas realmente. A justiça é algo que normalmente não dá pra entender. Hoje em dia tem policial que ganha um salário ruim, mas tem boas casas e carros. Tem ladrão de loja de roupa que fica preso e um inocente vai junto, parece que foi premiado, mas dessa vez não na mega-sena.

O que vocês acham que a polícia fez? Colocou o nome do garoto na rádio, como se fosse ladrão. Depois que soltou nem se quer mudou sua atitude em relação ao garçom. Os policiais veem o trabalhador por aqui sempre que passam.

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- Quando eu tinha minha moto, era uma mulher diferente por semana... dormia na casa das minas e tal...
- É desse jeito mesmo...
- Meus amigos passavam lá em casa pra darmos umas voltas de moto por aí...
- Coisa linda mesmo...
- Mas agora nada... ninguém me procura... nem meus parceiros... nem a mulherada... parece que sou outra pessoa...

...

Pois é... chegamos a outro problema do nossa dia a dia aqui nas ruas. Uma pessoa sem seu bem e querido pertence material... aquele que leva e trás, que quebra o galho. Realmente faz diferença. Faz parte da vida material do nosso tempo.

Aí quando ele me diz: “(...) parece que sou outra pessoa (...)”, eu penso: "sim... você é outra pessoa".

É um jovem trabalhador que usou sua moto pra conseguir sua liberdade injustamente tirada pela polícia.

Mas e como usar essa revolta inserida pelo sistema? Isso nos faz filosofar, assim como a justiça, mas em forma de raiva.