terça-feira, 4 de novembro de 2008

D.H.

Dódi Hernandes é um dos maiores, se não o maior escritor que conheço.

O leio sempre...

Dessa vez retirei um fragmento imortalizado que este nobre
literata escreveu.

Uma homenagem aos admiradores do raro D.H.

Vôo da chave antenada

Leva seus dedos à cabeça e alivia uma coceira estúpida que atrapalhava sua tristeza. Agora é o pescoço que incomoda, mas seus dedos trabalham novamente. Quando percebe está necessitando de mais dedos ou de um bom banho ou, por que não, se transformar num polvo.

Esperava às horas passar, foi ver que horas eram e, num susto refletido em seu rosto, foi pro quarto se arrumar. Na verdade buscava alguma ocupação, mas não fazia nada simplesmente por falta de vontade. De repente sentiu vontade de sair. Sem tomar banho, apenas com uma outra muda de roupa, mais apresentável, mais bonito.

Era mais de meio dia e o sol estava agredindo, como não havia tomado banho e nem se preocupado com as coceiras, começou a suar, fedendo violentamente. O inacreditável é que não tomava banho por falta de vontade e já fazia vários dias que esquecera da ducha que, só pra situá-lo, ficava no banheiro.

Dizia não! Não estava precisando se limpar, na verdade buscava a sujeira mesmo. Não escovava os dentes, aliás, estava sem escova. Na rua, com o sol na moleira, suava, com uma pele sebosa e nojenta, fedendo. Suas roupas, uma calça de linho bege e uma camisa azul que com a pressa rapidamente ficaram manchadas de suor.

Parou numa sombra proporcionada por uma mangueira sem frutos e bastante folhada. Respirou fundo, pois a parada brusca o deixou com um forte mal estar. Seu desleixo não incomodava, colocou o nariz por dentro da manga da camisa para verificar a situação. Estava bem! Queria andar e andar, com pressa, mesmo sem destino. Só pra cansar. Já estava cansado de tudo, do trabalho que novamente não comparecera, dos amigos que nunca compareceram, do dinheiro que rapidamente sumira. Só parava pra observar quando via alguma mulher, aí sim! Seu olhar, sua postura, seu andar, tudo mudava instantaneamente, mas era momentâneo.

Parou novamente! Desta vez exausto, embaixo do pilar de uma obra. Muitos trabalhadores empenhados na construção de algo que ainda não havia aparentemente se definido. Estava tremendo, suas pernas bambeavam. Um senhor que estava preparando a massa pra obra chegou por traz:

- O dotô tá de boa?
- Sim! Sim... um pouco cansado, mas estou legal... o senhor poderia me arrumar um golinho de água aí?
- Tem sim. Espera um pouco – o homem pegou uma velha bolsa que estava pendurada no guidão de sua bicicleta e tirou um cantil.
- Toma aí.
- Obrigado – e pegou o cantil.
- Só uma coisinha – interrompeu o pedreiro timidamente – não bota a boca não beleza. – ele com certeza deve ter se surpreendido com o fedor do colarinho chique que ali estava.

Após tomar um pouco daquela água se dirigiu até um boteco que ficava duas quadras dali, indicado pelo senhor da construção – ele queria comer alguma porcaria. Logo nos primeiros passos sentiu umas cólicas na barriga, faltava um pouco menos de duas quadras, cerca de duzentos metros pra chegar ao bar. Começou a caminhar mais rápido, aumentando a dor nas pernas, forçando mais o corpo e conseqüentemente sentindo uma cólica ainda mais forte.

“Droga! Não vou agüentar!” Nisso viu uma senhora lavando a calçada de uma casa, parou e pediu que cedesse o banheiro. “Olha meu filho, sou só empregada, não...”.
Ele nem esperou a mulher terminar de falar e já estava andando, agora mais lento, respirando pausadamente. Quando vinha uma cólica, aumentava o passo e ficava de ponta de pé. Seu rosto refletia seu desespero. Estava a poucos metros do bar, um velho sentado na mesa em frente à porta, tomando uma branquinha, rachava o bico de rir da cena que estava presenciando desde quando sua vista alcançou um homem de andar estranho na rua.

Entrou no bar e desesperadamente tentou abrir o banheiro, a porta trancada aumentou seu desespero:

- Preciso usar o banheiro – gritou!
- Pega a chave! – gritou em tom de brincadeira o dono do bar, jogando o objeto de surpresa contra o homem...

Uma cena lamentável! Ao ser surpreendido pelo dono do boteco, levou um susto, perdeu sua concentração intestinal e, numa fração de segundos (o tempo de olhar pra chave vindo em sua direção e trancar o cu pra merda não sair – não foi capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo) nem pegou a chave...

“Sai do meu bar seu filha da puta!” – gritou o bodegueiro...

- Deixa eu me lavar no banheiro?
- Sai fora seu nojento. Não sei quem fede mais, você ou sua merda seu filho duma puta... – advertiu o barman.

O velhinho que estava na frente do bar sorria como criança ao ver um homem todo cagado saindo do boteco. “Derruba mais uma branca! Pro porra do santo, hehehe... pra lavar a alma desse infeliz, porque o corpo já era...”.
E ambos gargalharam numa altura que se ouvia a mais de cinqüenta metros...
“Droga! Por que tinha que acontecer isto?” Começou a falar com sua consciência. Tinha uma longa conversa até voltar pra casa, pois havia caminhado uns bons quilômetros.

...

Não necessitou muitos passos pra sentir na pele seu desleixo. As pessoas passavam por ele como se deparassem com um monstro. Começou a sentir dois ódios: um sobre si (queria se morder, se limpar com seu sangue), outro sobre as pessoas que o comiam como canibais (queria massacrá-las, passar por cima, pisar, matar). Mas os passos continuavam a castigar aquele homem. A merda já começava a secar em seu corpo. Sua roupa, seu cheiro, mistura formando uma essência totalmente chamativa, inconveniente e exagerada.

Sua consciência dimensionava uma culpa que na realidade não sentia, mas era passada pelos olhares que atiravam flechas sobre seus movimentos. Não sabia mais o que fazer, decidiu parar. Entrou num terreno baldio, objetivando esperar anoitecer, pois na escuridão só sua sombra atiraria flechas venenosas.

O lote estava coberto por uma vegetação desconhecida, parecia plantação de mandioca, com capins e alguns pés de limão. O homem exausto sentou na sombra do limoeiro. O cansaço era grande, suas pernas estavam amortecidas, seus pés com bolhas. Queria comer, desfrutar da gula que atormentava suas idéias. Aos poucos foi adormecendo, sentindo cheiro de comida, do tempero dos legumes, da massa a esperar num prato fundo, com uma cerveja gelada. Assim adormeceu e assim ganhei mais território.
Enquanto ele dorme é mais fácil trabalhar. Nunca vi essas pessoas trabalharem como nós. Conheci todos os tipos de gente, todos fedem, apodrecem, me alimentam. Todos são assim, hora se apresentam como se fossem pra guerra, hora são medrosos como se estivessem desarmados no front.

Nós sabemos que o trabalho solitário é necessário, mas nada melhor do que muitos em busca de um só objetivo: construir algo. Não sei o que, mas esse tipo de gente está sempre buscando algo. Também estão sempre insatisfeitos, andando sem rumo com uma armadura de apresentações, mas internamente oferecem todo banquete de excremento necessário pra satisfazer um exército de famintos.

Estão querendo agradar, mesmo quando não querem, acabam o fazendo, porque quem está na frente, ou atrás, pensa de forma pré-determinada, se agradando. A consciência e suas sensações, o corpo e suas sensações, tudo vibra, fica amostra, transborda, explode. Cada um a sua maneira, uns exageram, outros são discretos. E ainda podem: disfarçar, enlouquecer, fugir, enfrentar, representar, etc...

Tudo que é humano resulta em excremento, alimentam nações com: ódio, fé, esperança, vingança, prosperidade, amor. Mas na verdade, no subterrâneo, algo acontece de forma silenciosa, imperceptível, que culmina numa explosão que vai além da compreensão visionária, da intuição, mas vai muito mais além da razão, da crença e das ideologias.

Quem está na merda, fedendo, não tem espaço pra amizade, não oferece nada de bom... Humanamente falando né.

Acordou! O que me importa seus sonhos, me preocupo com a carcaça. Levantou, balançou sua roupa, sua merda estava seca, misturada à terra do lote. Estava aparentemente tonto. Era quase noite, agora com mais fôlego, continuou sua desastrada peregrinação, talvez o stress, a rotina, a pressão, o fizeram realizar essas sessões atormentadas de atos humanamente desprezíveis e nojentos.
Resultado disso: roupas melecadas... o que pensou quem o viu naquelas condições! Quem realmente o viu, será que às pessoas prestam atenção?

...

Tomou um banho longo, não lavava só o corpo, também sua alma. Olhou no telefone se a secretária eletrônica continha chamada, olhou no celular as chamadas e mensagens, nada, nada e nada, nenhuma reclamação, nenhum elogio, ninguém compareceu, será que passam por dificuldades semelhantes? Será que é difícil ser humano? Viver esperando ou esperando viver...

Na verdade quando um homem desses resolve agir, sempre sobra pra mim. Nunca me faltou nada, hoje, por exemplo, foi o resultado de dias na espera pra que algo acontecesse. Já estava previsto, foi óbvio, ocorreu da forma mais regada, nem eu imaginava tamanho sucesso. Agora a fase passou, mas a semente foi plantada e rapidamente surgirá muitos que se beneficiarão com problemas dos outros.

Se me perguntarem o nome, quem é, onde mora, por que aconteceu tudo isso, eu não sei. Realmente não estou preocupado com isso, minha vida é mais direta, rápida e perigosa, vai acontecendo em todos os lugares. Eu estou em vários lugares, mas agora vou embora, já produzi o suficiente. Antes de sair, ainda vejo ele no telefone:

(...) Não, não! O dia foi bem tranqüilo – (...) – No trabalho? Ah! Está tudo bem. Acho que vou pedir demissão, estou meio de saco cheio desse serviço...

Mentiras... Defesa covarde adotada pelo fraco e pelo forte. Usada das mais diferentes formas. Já estou acostumada. Como percebeu, já decifrei, traduzi, me adaptei, estou vendo, lendo, desfrutando de forma não invisível, mas através da sujeira e do excremento animal que são fartos em todos os cantos. Vou procurar outro:

BBBZZZZZZZZZ.....


D.H. (Dódi Hernandes)