CAPÍTULO IV
Tive um
ótimo sono. Fazia tempo que não dormia bem. Confesso que comparado aos últimos
dias foi o momento mais lúcido pelo qual passei. Estranho como as coisas vieram
à tona de forma tão limpa.
...
- O que você
é do Vincent?
- Esposa.
- O que?
Você é casada com ele? Mas... desde quando?
- Faz poucos
meses, mas o conheço faz anos...
- Mas vocês
não parecem casados! Ele interage com todo mundo aqui na comunidade, já você...
- Eu?
- É...
bem... você não! – fiquei sem saber como dizer que Vincent levava algumas
mulheres na conversa enquanto Louie se mantinha na defensiva.
- Olha...
existem coisas que não precisam ser explicadas, mas meu casamento é um pouco
diferente.
- Como
assim?
- Sou casada
com Vincent, mas fiz isso com outros propósitos. É uma história que prefiro
guardar comigo, não posso falar com quem não tenho intimidade.
...
Nosso papo
foi longe. Conversamos bastante tempo. Falei da minha vida, ela da dela. Louie
perguntava bastante sobre os ideais da comunidade, se eu acreditava em todo
sonho paz e amor. Percebi que ela tinha mais o que falar, não era apenas
indagações, Louie buscava alguém pra compartilhar algo.
A primeira
vez que ela me deu abertura, não perdi a oportunidade. Estava sentado perto da
minha barraca, vi a aproximação e o convite pra dar uma volta. Louie segurava
uma toalha, me olhou, sorriu e andou em direção ao início do bosque em que
fazíamos nossas festas. Fui atrás, sem dúvida! Como se estivesse hipnotizado
por ela.
Ao seu lado
me senti outra pessoa. Novamente esqueci tudo a minha volta. Ela era cheirosa,
não estava sempre chapada, parecia observar tudo. Tinha algo diferente em
Louie. Olhava fixo nos meus olhos ao falar. Escutava da mesma forma. Sua beleza
contrastava com sua inteligência. “Como pode existir alguém assim?”, pensava
comigo.
Naquele
período acreditávamos em ideais, as pessoas faziam parte daquilo. Porém Louie
me fazia acreditar nela! Causava uma grande confusão na minha cabeça estar ao
lado daquela deusa. Isso me fazia melhor, aquilo me dava conforto, sensação de
poder, status... tudo ao contrário do que vivia na comunidade e parecido com
minhas festas no bosque.
Então... ela
me olhou docemente e veio aos meus lábios. Fechei os olhos e senti o melhor
beijo da minha vida.
Depois desse
dia tudo mudou. Louie agora era minha. Como se ela fizesse parte de uma
propriedade particular. Tinha ciúmes da intimidade dela com Vincent, não
gostava dele. Contava os minutos pra tirar sua roupa, ir ao bosque na sua
companhia...
...
Numa tarde
passei um pouco dos limites. Talvez ultrapassar uma linha que divide o certo do
errado, muitas vezes, pode dar certo. Aquilo mudou nossas vidas.
Percebi
Vincent discutir com Louie. A impressão era de que ele precisava de algo e ela
não queria dar. Discutiram até entrar na barraca. Fiquei curioso e fui
lentamente até eles, sem permissão entrei. Então a vi aplicar uma dose de algo no
braço dele, que entrou em transe.
Louie me
chamou pra sair.
...
- O que foi
aquilo? – perguntei a ela.
- Heroína.
- Sério!
- Sim...
Vincent é viciado.
- Mas como
assim, você aplica nele e não usa?
- Não.
- Vocês são
misteriosos mesmo!
- Olha...
nós temos alguma coisa não é? Quer dizer... posso confiar em você?
- Claro!
- Bom...
primeiro quero dizer que não gostei do
que você fez... entrar na barraca daquela forma, mas já que entrou... bom...
eu contaria isso pra você mais cedo ou
mais tarde...
- Certo...
- Mas o que
eu quero dizer... ou melhor... eu quero chegar num ponto que não sei se você
está preparado ou disposto. Quando estava na estrada com Vincent sugeri parar
aqui, pois imaginei que as pessoas daqui gostassem de aventura. Certo?
- Certo.
- Você
toparia um desafio?
- Que tipo
de desafio?
- Toparia um
desafio ou não?
- Claro! –
respondi eufórico.
- Olha...
existem certas coisa que podem sair do controle, menos a nossa confiança. Não
esperava conhecer alguém como você, ainda mais nessa comunidade, mas a vida nos
revela surpresas e agora quero ficar ao seu lado.
...
Aquelas
palavras, aquele olhar. Ela é imponente. A única coisa que vejo são as novas
perspectivas. Antes imaginava morrer livre no meio do mato. Agora quero seguir
a minha vida ao lado dessa pessoa. Antes acreditava lutar contra a guerra
através do paz e amor. Agora meu amor pode me levar à guerra.
...
- A minha
dúvida (disse ela com olhar desafiador) é se você está preparado pra estar ao
meu lado.
- É claro
que estou...
- Está? Aqui
vocês parecem todos inocentes...
- Inocentes
do que? E culpados por quê?
- Parecem
inocentes no sentido de que tudo é bom... tudo é azul... tudo é legal... basta
ter um baseado, heroína, LSD, que está tudo bem...
- E não
está?
- Depende.
- Do que?
- Dos
objetivos.
- E quais
seriam eles?
- Não penso
em morrer aqui. Longe disso. Tenho projetos maiores. Não quero criar raízes
neste lugar, muito menos carregar a âncora do Vincent pelo resto da minha vida.
- Eu também
sou uma âncora?
- Não, você
pra mim, até agora, me parece uma solução. É a pessoa que sonho levar comigo!
- Cuidado
com o que fala, desse jeito sou capaz de fazer tudo pra ser levado por você.
- Tudo! Como
assim? Tudo o que? – disse meio misteriosa.
...
A euforia
provocada pelas palavras de Louie me despertou a selvageria. Tinha esquecido
como era bom sentir aquilo. Olhei pra ela, ainda não era hora de mostrar minha
arte, a hora agora era de fazer um sexo selvagem. Entramos no bosque e desta
vez cuidei de tudo...
...
Exaustos
deitados numa toalha no meio do mato, olho pra ela e percebo seu olhar de
satisfação. “É disso que ela gosta. Ela também é selvagem!” – pensei comigo.
- Então você
é selvagem? – brinquei com ela.
- Mais do
que você imagina...
- Sério!
Gosta de matar... cortar... morder... comer... estuprar... – disse sorrindo,
com sarcasmo.
- Por aí...
Essa
resposta não teve a mesma conotação de brincadeira da minha pergunta. O que fez
levantar um ponto de interrogação na minha cabeça.
...
Minha dúvida
se tornou certeza quando Louie disse que as doses de heroína pra Vincent era
uma estratégia pra fazê-lo falar. A intenção dela era aplicar doses diárias da
droga e fazê-lo revelar o caminho do seu dinheiro.
...
- Vincent
tem muito dinheiro, você não faz ideia do quanto!
- Sério...
como você sabe?
- Eu sou a
mulher dele, esqueceu?
...
Sempre esquecia
que eles eram um casal, afinal, nós também éramos um casal e combinávamos muito
mais. Por isso Vincent estava com seus dias contados.
...
Louie
comentara que a família de Vincent era de republicanos americanos que na década
de 50 desciam o mapa em direção a ‘cidade proibida’, Havana – Cuba, pra gastar
seus dólares com jogos, prostitutas e festas. Ela dizia que em jantares todos
eles falavam sobre a ilha em que os republicanos iam deixar seu conservadorismo
de lado.
Na maioria
das vezes as ‘reuniões’ eram fechadas e eram marcadas pelo encontro do alto
escalão republicano americano, membros ligados a KKK e a extrema direita
mundial. Sobrava pro povo cubano aturar toda essa merda, já que o governo da
época tinha ligações obscuras com os americanos e pra manter esses laços, o
governo da ilha, transformou seu país num puteiro e num cassino. Era lá que
Frank Sinatra afiava seu gogó.
...
- Tenho nojo
da família dele.
- Entendo. Olha
só... eu tenho algumas táticas anti democráticas. Sabe como é... os fins
justificam os meios. Posso fazer o Vincent falar. Agora preciso saber qual é o
plano.
- O plano é o
tirarmos de perto das pessoas. Vamos pra algum lugar em que não haja incomodo.
Daí, com doses de heroína, o fazemos falar. O que acha?
- Acho que a
heroína podemos guardas pra alguma ocasião especial. Tenho métodos mais
eficazes.
...
Vincent
estava na barraca meio doidão, o que facilitou pra sairmos do acampamento.
Comentei com alguns amigos que iria cair na estrada com o casal. Levantei
minhas coisas, preparei as armas e ainda por cima levei uma surpresinha pra
Louie saber como funciona meu método.
Os dois já
estavam preparados também. Então eu, meu amigo, Louie e Vincent fomos em
direção ao bosque.
...
- Você está
estranho – disse Louie pra mim.
- É que toda
vez que entro nesse bosque parece que outro ser toma conta de mim.
- Como
assim? – questionou ela.
- Ele tem um
amigo oculto! – disse Vincent doidão. Olhei pra ele com ódio. “O que esse desgraçado
falou? Vou matá-lo”.
- Logo você
vai entender Louie. Quando chegar ao meu santuário dentro desse bosque, irá
entender. Já você Vincent, cuidado com a língua.
- Ah! Cala
essa boca. Pensa que eu não sei quem você é? Conheço seu tipo. Você tem um
amiguinho que muda sua personalidade. Às vezes você fica violento, às vezes
não... o fato é que você não sabe nem quem você é! Estou errado? Claro que
não... eu estou sempre certo!
...
Vincent
tinha mesmo uma áurea bonita. Era algo cativante. Um personagem impar. Louie
havia dito que ele negou ser igual sua família, porém era um pote de ouro
ambulante e isso o tornou um alvo.
...
A mata ficou
mais fechada, o espaço entra as árvores menores e a luz do sol passava com
dificuldade. Sabia que estávamos perto. Louie estava encantada com o lugar e
Vincent queria mais heroína. Realmente ele estava completamente dependente.
Logo abriu
um espaço entre as árvores. Então os dois pararam. Meu santuário tinha crânios
espalhados pelos cantos e ossos jogados por todos os lados. Abri minha mochila
enquanto Vincent observava tudo aquilo. O agarrei pelas costas e passei uma
corda em seu corpo. Levei-o até uma árvore e amarrei com força. “A festa vai
começar!” – pensei comigo.
...
- E aí! O
que achou do meu santuário? – perguntei a Louie que olhava tudo aquilo
encantada! Sim... ela estava encantada. Isso me deixou eufórico.
- Lindo! De
quem são esses ossos?
- A maioria
são de hell angels ou hippies que acreditam em papai noel.
- Você fez
isso sozinho?
- Não... eu
e meu amigo.
- Que amigo?
Não consegui
responder.
- Vincent
estava certo, você tem um amigo oculto! Não tem problema, eu fico com vocês
dois. Tudo bem pra você?
Respondi
positivamente com a cabeça. Meu amigo olhava pra Vincent com nojo. Estava na
hora da festa começar. Então Louie foi até seu marido pra aplicar mais uma dose
de heroína. Neste momento expliquei como deveria ser feito:
- Calma meu
amor. Não vamos fazer desse jeito. Tenho uma surpresa pra você.
- O que é?
- Precisamos
fazê-lo falar. Por isso eu trouxe uma surpresa. Com toda certeza ele precisará
ser anestesiado, assim poderemos negociar as doses...
- O que você
trouxe?
Fui até
minha mochila e tirei uma garrafa.
- O que é...
estou curiosa!
- Observe!
Aproximei de
Vincent. Ele estava com os olhos vidrados em mim. Parecia que sabia o que
estava pra acontecer. Não entendo o que esse cara tem. O fato é que ele me
olhou e disse:
- Trouxe um
pouco de água com açúcar pra me fazer sofrer?
Aquilo fez
minhas pernas tremerem. “Como ele sabia disso? Foda-se. Não vou ouvir o que
esse cara tem a dizer. Sua hora chegou e tenho Louie pra me levar ao inferno”.
- Derrame isso
em mim! Traga os filhos pra perto do seu pai. Meu santuário se tornará uma
festa! – delirou Vincent, que com os olhos fixos em mim, começou a fazer
premonições.
Meu amigo
não deixou que eu fosse absorvido pelas palavras de Vincent e me guiou. Então
peguei a garrafa e derramei a mistura pelo corpo do nosso refém. Louie havia
tirado a camisa dele e começamos a espalhar água com açúcar no nosso
amiguinho.
- Água com
açúcar! – disse Louie.
- Pois é... daqui
a pouco todo tipo de inseto, formiga e sei lá mais o que percorrerá o corpo
dele. Logo começarão a corroer sua pele. Ele vai precisar de mais droga pra não
sentir dor. Ele vai precisar de muita droga pra não sentir dor...
- Gostei da
ideia – manifestou Louie, com os olhos radiantes.
...
Então
sentamos uns metros longe de Vincent pra observar a ação da minha surpresa.
Também Louie iria me explicar o seu plano pra prosseguirmos.
Tínhamos uma
certeza: já estávamos num caminho sem volta, estávamos sem freios numa estrada
com muitas curvas e que beirava constantemente os mais profundos abismos.