terça-feira, 11 de novembro de 2008

O MATO

Atuítuí é um índio sagaz e esperto de uma comunidade na região amazônica. Casado com uma bela índia, perdeu o rumo quando essa fugiu com um antropólogo americano, loiro, de olhos claros, que pertencia a uma ong que aculturava aquele nicho primitivo e selvagem.

O gringo usava camisa cinza por dentro de uma bermuda cinza, com meias quase até os joelhos e sapatos anti picada de serpente. Também usava um chapéu no estilo Indiana Jones. Com o tempo seduziu a índia curiosa com a novidade e a levou não sei pra onde...

Sozinho e discriminado dentro da comunidade, Atuítuí foi atrás do Dom Juan das tribos indígenas brasileiras. Com uma calça camuflada e uma camiseta do Corinthians, o índio saiu do seu lar em busca de sua esposa fujona.

Em Manaus perguntou às pessoas informações sobre sua mulher, todos diziam: “quem foge vai pra São Paulo, todo mundo vai pra lá!”. O índio tinha uma mochila com mandioca e uma farinha indígena, sustâncias pra se manter durante dias, já que a mandioca o alimentava e a farinha amenizava aquele vazio no estômago.

Ele pegou carona com caminhoneiros, não falava, simplesmente queria chegar a São Paulo e encontrar sua amada. Depois de dias na estrada e diversas caronas, Atuítuí chega a capital paulista.

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Vislumbrou a cidade de longe, mas logo saiu caminhando, nunca tinha visto nada como aquilo. Prédios, trânsito, barulho, pessoas com pressa, pessoas alucinadas, uma vida totalmente diferente daquilo que jamais havia sonhado. Tudo novo, tudo complexo. Pra quem é acostumado à agricultura de subsistência, algo estava errado.

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A primeira noite foi dormida embaixo de uma pilastra em frente a uma lanchonete que tinha um índio desenhado no banner frontal. Logo pela manhã o chutaram de lá e quase espancaram aquele homem perdido em meio a paulicéia.

Atuítuí não parava de caminhar por São Paulo, até chegar ao Arouxe e ir em direção a Praça da República. Sua segunda noite foi por lá. Houve uma confusão, mas ele não retrucava, não respondia, só pensava na sua amada e em economizar sua comida.

Ao acordar, no outro dia, estava sem seu alimento, haviam roubado. Ele não entendeu, mas sentia o primeiro ódio tocar seu coração. Quando pensava na sua mulher, era como se o sol batesse na bosta do zebu e abrisse aquele cogumelo... era o florescer das cores... numa manhã linda após uma noite de chuva fina e continua.

Bom... Atuítuí já estava faminto, fedendo e cansado, não sabia mais se aquilo havia sido uma boa idéia, até porque todos que passavam por ele nas ruas se pareciam com gringos padronizados, porém com roupas diferentes.

Durante o dia encontrou um homem que estava o flagrando há algumas horas. Ele o chamou para segui-lo e empurrar sua carroça cheia de entulhos. O índio não respondia, mas estava ajudando aquele homem em troca de pouca comida, mas o suficiente para mantê-lo vivo.

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Aquele homem vivia nas ruas também, tentava conversar com o índio, mas Atuítuí só sabia falar seu dialeto indígena e um pouco de inglês, que o Dom Juan havia o ensinado antes de roubar sua mulher.

Dessa forma o diálogo entre eles era praticamente nulo. Eles apenas brincavam ou sorriam quando o homem comprava uma pinga e os dois bebiam até dormir. O índio já tomava um goró pra aliviar a tensão.

Com o passar do tempo, Atuítuí passou a ter ódio ao invés de amor no coração, já estava sem esperança. Sua amada, pensava ele, devia estar morta, pois não conseguiria viver nas ruas, levando um carrinho de entulho, comendo porcaria e tomando pinga...

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Numa manhã cinzenta paulistana, Atuítuí viu em frente ao seu "dormitório comunitário" um homem colando uma bela mulher num outdoor. Era uma propaganda de roupa gringa e uma índia, com cabelos longos, lisos, escuros, corpo magro, olhos atraentes, pousava para o mundo.

Atuítuí começou a gritar e sorrir, acordou todos os mendigos. Chorava, clamava pela luz solar, olhava para o céu e sorria. O homem havia feito seu trabalho no outdoor e saiu fora, até porque o índio ficou em frente a foto, a admirando, chorava e as lágrimas escorriam. Ele de joelhos olhava pra imagem como se aquilo fosse fonte de vida, fonte de luz.

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Estava ajoelhado perto do meio fio, na rua. Ali estacionavam carros, seus amigos tentavam tirá-lo dali, mas ele voltava... o arrastavam, mas ele estava em transe, não havia jeito de fazer com que saísse dali.

Seu companheiro estacionou sua carroça cheia de entulhos, móveis quebrados, papéis, etc... em frente ao índio e ficou ali a esperar. O índio não parava de chorar, fazia algum tempo que estava ali. Com o passar dos minutos começou a atrapalhar o estacionamento dos carros.

Após um tempo a guarda municipal foi chamada. Ao chegarem o rueiro explicou a situação, mas o homem da lei, pressionado pelas pessoas, chegou pra Atuítuí e conversou... mas ele só chorava, além de não entender o português. O índio olhava pro céu e voltava a cabeça em direção a imagem da sua ex-mulher, agora modelo...

O guarda se irritou com a situação e tirou o índio, o arrastando. O policial não conseguiu segurar Atuítuí num determinado momento enquanto o levava pra outro lugar, arrastado. O índio escorregou das mãos do guarda e caiu, bateu a cabeça no meio fio.

Aí o homem da carroça foi socorrer seu amigo, esse que estava bem, já que o tombo não fora grave, porém o policial já irritado empurrou o mendigo e esse foi em direção a sua carroça, trombou e caiu violentamente no chão.

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Atuítuí sentiu ódio mais uma vez, olhou pro policial com sua roupa cinza, chapéu e todos aqueles acessórios. Vislumbrou o Indiana Jones ladrão de índias inocentes.

Dessa forma o sangue de seus antepassados ferveu e Atuítuí foi até a carroça, pegou um pedaço de pau pontudo que era de uma armação de uma cama. Seu avô, seu pai, as gerações através da luz desceram nele e o índio num ataque feroz e rápido lançou aquela espécie de lança no policial.

A arma atingiu o olho do guarda, entrou direto, ficou fincada em seu olho direito. O homem gritava de dor, as pessoas ficaram em estado de choque.

Atuítuí foi sobre o guarda, como um carnívoro faminto, o homem se batia no chão de dor. Atuítuí arrancou a lança, nisso o olho e uns pedaços da carne e toda a porra que faz parte da estrutura óptica da polícia foram arrancados.

O índio saiu correndo como se estivesse na floresta amazônica, ninguém soube de Atuítuí depois daquele dia. O sangue da floresta falou mais alto, numa selva de pedra...

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Por isso eu lembro, depois de tudo isso, que um amigo meu disse certa vez uma frase que é uma verdade:

“Se você sai do mato, vai sempre levá-lo consigo, pra onde for”...