sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Sentimento, conhaque e honestidade

CAPÍTULO I

Aqui no asilo tudo é calmo. Meus velhinhos são bem comportados, com exceção de dois. Eles já passaram dos oitenta, mas não perceberam isso. São engraçados, conversam como dois adolescentes, contam piadas e cada história! Às vezes me pergunto, serei dessa forma? Confesso que fico feliz em vir trabalhar e saber que eles estarão prontos a me alegrar. É contraditório, eu deveria cuidar deles, mas acho que eles fazem mais falta pra mim, do que eu pra eles.

Eles não enxergam quase nada, então eu vou até eles, levo um de cada vez pro pátio, os deixo tomando um pouco de sol e depois vou lá e conto uma história. Tem que ser do jeito deles, senão eles me ofendem. O Reginaldo me chama carinhosamente de safadinha, o Alvarenga só dá risada. Eu gosto...

...

“Olá meus amores, já tomaram bastante sol hoje? Está na hora de uma história pra vocês! Ok?” – pergunto. “Tudo bem gata, mas vai lá ao meu quarto e pega meus óculos escuros, pode crer?”, disse Reginaldo. “É! Pega o meu também”, disse Alvarenga.

Lá fui eu, atendê-los. Peguei os óculos e fui pro quintal. Eles não tentavam mais fugir, depois de tantos transtornos, agora eles não iam muito longe. Estava um pouco tensa, meu filho é metido a escritor e esses dois coroas são jornalistas, por isso hoje vou ler um livro que meu filho escreveu. Espero que eles gostem.

“Aqui estão seus óculos escuros, aliás, hoje vou contar uma história que meu filho escreveu. Espero que gostem!”. “Não é bem assim, só porque é seu filho! A história tem que ser doida” – sempre do contra Reginaldo me encheu... “É boa... meu filho escreve muito bem por sinal” – retruquei. “Vamos ver então, se não for boa vou mandar você embora”, disse Alvarenga, viajando como sempre.

Sentei ao lado deles e peguei os papéis. Coloquei os óculos de lente, pois minha visão não estava lá essas coisas. “Depois eu é que estou velho”, me zuou Reginaldo... os dois deram risada. Bom... já estava acostumada, então os olhei com seriedade e eles logo pararam. “Vai vai... conta logo esse negócio aí... é bom que não seja muito longa, porque eu tenho compromisso”, disse Alvarenga com ar de seriedade, como se tivesse que ir trabalhar... Reginaldo nem comentou... eu tive que dar uma gargalhada depois dessa.

...

“Esfrego a mão no rosto deitado em minha cama, numa sexta feira. Esse negócio no meu peito, quando vou soltá-lo? Domingo tem show, nosso segundo show... amanhã vai rolar ensaio? É sempre incerto, mas combinei com Francisco pra trazer o computador mesmo assim, pois vamos gravar nossas músicas.

Sábado: aparelhos ligados... o bicho vai pegar. Os goles, os camaradas, a banda, tudo certo. O Fábio e a Raquel devem chegar à noite. “Muitas coisas”, “Heróis de verdade”, “Não é difícil mas...”, “Burro inútil”, “Contestado”, “Através da união”, “Galáxia” e “O capeta não ousou”... foi até aí, pois arrebentou a corda do baixo do Ronaldo...

O resultado está num cd 100% caseiro. Quando acabamos já era noite e Fábio, meu camarada de Foz do Iguaçu, já estava por aqui. Trouxe um bom vinho, presente que seu pai mandou pra mim. Minha namorada, Ágata, também está por aqui, lógico, é minha parceira... que bom que a tenho. Esse sábado está legal, pena que o Gui está trampando, pois se ele estivesse à gravação ficaria com uma qualidade superior, mas o Francisco e o Alexandro fizeram um trabalho legal.

Já se passaram horas, infelizmente minha namorada foi pra casa, a Raquel está dormindo e só restaram eu, Junior e o vinho”.

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- Hum... isso me lembra uma vez que seu pai mandou um vinho pra mim, lembra Alvarenga?
- Claro. Acho que sou esclerosado igual você?
- Que engraçado que você é... cof cof cof...
- Fuma seu verme
- Posso continuar?
- Prossiga safadinha... cof cof cof...

...

“Domingo de manhã: o show é às seis da tarde. O Junior foi pra cama e aqui estou. Esperei bater o sono e dormi no sofá. Não lembro a hora que dormi, mas sou o primeiro a acordar, tomo mais um pouco de vinho. Aos poucos acorda a galera. Não tem rango na casa, não lembro se o pessoal comeu, eu não comi nada. Esse é o preparativo pro show.

Ágata chega, chega o Gui (grande amigo), chega Dani (baterista), chega Carlos (guitarrista) com sua namorada Patrícia, Rodolfo (baixista) mora na casa, pegou a corda do Alexandro, que também mora na casa e tem um baixo. Além do Fábio e da Raquel que vieram de Foz do Iguaçu.

Tenho que levar meu cubo de guitarra pro local do show. Nós seremos a primeira banda a se apresentar no festival, portanto a última a passar o som. Antes nossa parada é num boteco em frente.

Conhaque... quase todo mundo está enchendo a cara, menos o Gui e a Ágata. Não comi nada, então eu e minha namorada demos uma volta ao redor da casa de show, mas no domingo tudo estava fechado. Bom... fomos passar o som e tudo certo: “Daqui uma meia hora vocês tocam...”, disse um cara do festival”.

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- É... beber e não comer é foda. Eu lembro uma vez...
- Cala a boca! Deixa ela contar a história, seu velho burro.
- Essa história tem rock n roll? É bom que tenha sua gostosa... (disse Reginaldo, os dois deram risada).
- Tem sim seus velhos tarados... vê se parem de interromper por favor?
- Gostosa... (resmungou Alvarenga, eu fingi que não ouvi pra poder continuar).

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“Antes quero dizer que nunca mais esquecerei o que aconteceu... da mesma forma que algo dentro do meu peito diz pra eu tocar, também diz pra eu escrever, pra eu fazer qualquer coisa que vier ou que tiver que ser feita. Assim sou.

Então nesse dia, já fazia quase quatro anos que estava em Cascavel, região oeste do Paraná. Nasci em Palotina, uns 100 Km pro Noroeste. Bom... são cidades do interior, eu sou do interior. Nessa região, na época – 2005 – em termos de punk rock, o que predominava era o chamado emo-core ou punk mais que melódico”.

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- Hum... emo-core é podre, fede mais que minha chapa no copo – disse Reginaldo e os dois caíram na gargalhada... confesso que não me segurei depois dessa.

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“Até aí nada contra, porém que não me impeçam de ter raiva dessa merda (rs...). O fanatismo pelo clássico talvez me deixasse com os pés e a alma pra trás em relação ao que hoje está impregnado na música. Fã de Ramones desde criança, devo a eles as pesquisas que fiz. Em Palotina, muito novo, destinava minha atenção ao punk gringo, isso com 11 ou 12 anos. Lembro das revistas do meu irmão, meu suporte.

Esse negócio no peito, que sempre sentirei, era dividido com meu interesse em jogar futebol. Foi assim que aos 15 anos, moleque, fui jogar em Camaquã, Rio Grande do Sul...”.

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- Você também jogou né Reginaldo! Até dar um bico de papagaio – caiu na gargalhada Alvarenga.
- Aí seu porra... mais respeito com a minha história, vou botar água sanitária na sua chapa quando você dormir seu filha...
- Opa opa... calminha aí meus velhinhos, não vamos partir pra agressividade – cortei o Reginaldo senão ele iria ficar meia hora xingando seu amigo.

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“No Guarany de Camaquã encontrei um mundo novo. Moleque, do interior, cidade nova, pessoas novas... o sonho na cabeça e a realidade nos pés. É assim com tanta gente que não dá pra contar nos dedos quantos já passaram por essa sensação...

Mas acho que muito mais pessoas não fizeram isso cedo, ficaram pra depois... quando tinham mais juízo... vamos assim dizer... ou já tinham mais experiência... outra palavra que se dá pra quando já se fez algumas coisas por aí.

Lá... além do futebol, aprendi a gostar do punk rock nacional. Tenho melhores lembranças da podridão, da tosqueira do hard core, do que dos treinamentos físicos que fiz. Vi algumas bandas, lembro que rolava muito show, circuito punk, bastante música própria, bastante Ramones e Sepultura. Tinha todo aquele mundo de anarquistas, nazistas, metaleiros, playboys... e de boleiro... eu.

Não terminei o ano escolar naquele período. Antes do último bimestre, saí de Camaquã, dei um tempo em Palotina e fui pra Cambará, também no Paraná, porém mais ou norte. Era engraçado, eu sempre perguntava pra rapaziada o que eles curtiam – musicalmente falando – as respostas: pagode, funk... essas são as unanimidades. Rock n roll, muito pouco... não sei como continuei gostando desse mundo... amor mesmo, resistência, teimosia, são estas as palavras”.
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- É aula de Geografia? – ironizou Alvarenga.
- Aí, já que você falou em resistência... eu tenho uma tatoo bem aqui, quer ver?
- (Rs...) Meu Deus seu velho retardado, olha o que você está falando!
- Ué... mas é verdade, dá uma olhadinha aqui gata.
- Larga da minha mão seu tarado, deixa eu continuar!
- É bom que seu filho tenha feito umas orgias nessa história...
- Tá bom Alvarenga, fiquei com medo agora... (rs... ironizei).

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“Bom... lembro que antes mesmo disso, passei uns meses em Porto Alegre, tinha uns 14 anos, fiz teste no Grêmio (não passei) e lá ouvi muito a rádio Ipanema, que me deu maior amplitude musical. Na época o Nofx, banda californiana de hard core melódico, se preparava pra tocar no Opinião (bar de POA) e eu convenci um carioca mais velho a me acompanhar... não sei como entrei... acho que minha altura contribuía e também meu parceiro tinha cara de malaco... alías... ele era.

Voltando a Cambará, Matsubara... fiquei dois meses por lá, torci o pé e como não havia assinado contrato, fui “tratar” em casa, Palotina. Fiquei meio ano por lá e novamente caí na estrada. Cheguei em Curitiba pra ficar pouco tempo, precisamente no Parolin, favela da capital... uma favela que tem várias classes sociais diga-se de passagem... desde burguesia até a pobreza.

Jogava futsal no Paraná Clube, morava e estudava no Parolin. Sorte que tinha uma rádio rock em Curitiba. Tem até hoje, mas a freqüência é outra. Sempre foi assim, o que eu curtia era nada a ver com a maioria, só o rap que mantinha uma identificação, principalmente pelo protesto e a poesia de rua.

Depois de um período de transição, resolvi estudar... houveram fatores que contribuíram pra eu não levar o futebol mais a sério na época, não me arrependo. Também sofri um acidente e me quebrei, isso me desanimou.

Assim cheguei a Cascavel, a fim de fazer Jornalismo, pois já escrevia... principalmente o que vivia. Também letras de música, pois já tocava um punk rock. Escrevia histórias... poesias... sei lá, já curtia esse negócio... e Jornalismo é muito bom”.

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- Você pediu pra seu filhinho lindinho escrever essa porra pra agradar-nos, não é? – sempre do contra questionou Reginaldo.
- É mesmo, você sabe que nós somos jornalistas e pediu pra ele puxar nosso saco – completou Alvarenga.
- Se você quer transar é só dizer safadinha...
- É... mas diga pra mim, não pra esse velho retardado aí...
- Não... você sabe que é comigo que você sonha.
- Meus deus, acho que deram o remédio errado pra vocês hoje... prestem atenção na história!

...

“Cascavel... estava querendo me formar, trabalhar, curtir e montar uma banda, assim como todo jovem. Minha curiosidade de fazer experimentos continuava e continua. Lembro de um sete de setembro, eu ia pra uma manifestação e por acaso encontro o Juliano (um grande amigo hoje) no caminho. Procuramos os demais revoltados e, sinceramente, somávamos quinze no máximo. Todos de preto. Nada verdadeiramente programado, a não ser a ressaca do dia anterior.

A comemoração em forma de passeata já havia começado, então entramos de caras pintadas, fantasiados, com bonecos pendurados em paus. “Marchamos” propositalmente em frente ao exército, que fecharia a comemoração. Com palavras de desordem, faixas em punhos (contra vereadores da cidade que haviam se envolvido em escândalos de corrupção) e bonecos do FHC e o Bush JR.

Paramos os milicos, o povo estava nos apoiando... por isso prosseguimos. Conseguimos o que não imaginávamos: o apoio popular. Nós manifestantes contagiamos os espectadores. Chamamos a atenção, o prefeito mandou a polícia paralisar a passeata. Tentaram nos reprimir, isolaram a avenida, começaram a fazer barulho, a polícia estava nos expulsando de uma via pública. Quebramos os bonecos, jogamos as faixas e deitamos. Fomos arrastados no asfalto.

Apareceu à manifestação na TV, fomos capa de jornais no estado. Mas e daí? Aquele grupo era politizado, porem Cascavel? Só estávamos em quinze!”.

...

- Tá melhorando! É bom seu moleque ser revoltado...
- Para velho... você acha que todo mundo é igual a você? – alfinetou Alvarenga.
- Se o filho dela fosse igual a mim ele seria meu filho... não lembro de nós termos transado safadinha, mas se foi uma rapidinha... quantos anos tem seu filho?
- (Rs...) Você é um demente... o filho dela é meu filho... né?
- Aí aí... acho melhor nós continuarmos essa história amanhã. O tempo de vocês já deu.
- Não não... você acha que temos todo tempo do mundo, amanhã pode ser tarde demais!
- Ué Reginaldo, está com medo de morrer? - perguntei.
- Ele é uma bicha mesmo... (rs...)
- Saí daí... você que tem platina nesse seu rabo enrugado aí...
- Seu cú que cospe...
- Querem parar? Hoje vocês estão umas comédias mesmo... mas meus amores... precisamos entrar, acabo essa história pra vocês outra hora tá bom? Vocês não vão ficar bravos comigo não é?
- Não agüento mais esse cara... Alvarenga... isso é nome de gente?
- Cala sua boca... Reginelson, Reginildo, Regilonso... (rs...).
- Preciso de um calmante...
- Eu também – respondi a Reginaldo.

...

Os levei pra dentro do asilo, os dois estavam cansados. Alvarenga foi pro computador e Reginaldo escutar música. Fiquei observando-os, deviam ser grandes figuras quando jovens, pois se com mais de oitenta anos fazem o que fazem, dizem o que dizem...

É bom saber que eles gostaram da história do meu filho, pois se eles permaneceram acordados e tagarelando, é porque gostaram. Os óculos escuros são justamente pra eu não saber se estão dormindo.
São dois malandros que se eu pudesse... levava pra casa.

Um comentário:

  1. isso "cheira" relatos de uma noite punk!


    estou no aguardo do segundo capítulo..

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