segunda-feira, 6 de julho de 2009

Algumas considerações mais ou menos finais

Encontrei Fábio depois que tomei aquela bala na cabeça. Algumas coisas não estavam resolvidas entre nós. Avistei-o numa espécie de crepúsculo, mas as dimensões eram bem diferentes; parecia que o sol estava perto da minha cara.

Meu camarada também parecia estar perto, mas eu caminhava, caminhava, e demorava pra chegar. Foi uma longa pernada até me aproximar – “isso só pode ser algum tipo de punição pelos meus pecados... esse sol na minha cara, fritando há sei lá quanto tempo! Porra... não chego nunca” – pensei comigo.

Enfim me aproximo de Fábio – “E aí meu irmão” – quando ele me olha o pôr do sol acaba e agora estamos embaixo de uma luz fluorescente, como se fosse uma sala de interrogatório. Olho pra sua cara e ela está toda fritada do sol. Realmente o entardecer foi um alívio pro meu camarada também.

“Cara... a sua ‘cara’ tá cheia de bolha, queimaduras. Acho que está derretendo!” –“Cara.... a sua também tá assim! E com um buraco na testa também! Você não está sentindo nada? Estou vendo um pedaço do seu crânio!” – “Vixi! Deve ser uma espécie de punição” – “É... pode ser!”.

...

Sentamos no chão e vimos um garrafão de vinho a nossa frente, dois copos e alguns charutos. Pegamos tudo. Enchemos os copos, acendemos os charutos com uns fósforos que surgiram do nada. Demos umas baforadas olhando um pro outro. Todos os lados eram escuros, olhava meu amigo e sua cara toda fritada. “Cara... está saindo fumaça pelo seu olho! Rarara” – Fábio dificilmente sorria, mas era engraçada a cena. “Cara... está saindo fumaça desse buraco na sua testa também” – dessa vez ele sorriu.

Lembrei que tinha algumas perguntas pra meu camarada. “Véio, por que você foi esfaqueado daquele jeito?” – “Ué... como você sabe que eu fui esfaqueado?” – “Eu vi tudo!” – “Sério?” – “Pois é... mas agora já era. Só me responde o por quê?” – “É uma longa história” – “Porra... e daí? Até parece que estamos com pressa!”.

Fábio me olhou e disse: “Sabe aqueles chats pornôs que tem na net?” – “Sim, sei” –“Então” – “Então o que meu?” – “Pô... sabe como é né” – “Não... não sei cara. Porra, fala logo!” – “A cara... sabe como é... andei tirando umas fotos por aí, e como tinha uns contatos na net, comecei a comercializar a parada”.

Não podia imaginar algo diferente vindo desse cara. “Sim, mas disso pra um maluco te encher de facada, há uma distância muito grande né” – “Deixa eu terminar de falar então porra! Fica atravessando a conversa!” – “Tá... beleza... continua cara, mas seja mas objetivo então. Beleza?” – “Vai te foder” – “Vai falar a porra da parada?” –“Calma, estou falando...”.

...

Fábio estava com a cabeça toda fritada. Muitas bolhas, sem pele e sem nariz. Seus olhos já haviam virado fumaça – acho que eu também me encontrava no mesmo nível de fachada. Mas ao mesmo tempo, meu camarada estava inspirado na oratória e começou a explicar seu nobre negócio.

“Comecei a vender fotos pornôs. Tem gente que gosta de coisas muito doidas cara, você não tem noção. Eu tinha um catálogo muito foda, era cabuloso meu material” –“Mas você tirava que tipo de foto? Como eram as fotos?”.

“Tinha vários tipos. Mas as que mais eu vendia eram com mulheres vestindo camisas de força, uma botona com um salto de uns 20 cm, chicote, algema e a porra toda. Às vezes eu filmava também, mas elas tinham que estar se espancando, a porrada tinha que rolar, o bicho pegar mesmo, sangue, insanidade e muita foda”.

Aí eu perguntei: “Mas você tirava foto de quais mulheres? Aonde você arrumava essas malucas?” – “Cara... tem muita gente doida, fazem qualquer coisa por grana” – “E pelo menos eram gostosas as mulheres?” – “Eu achava pelo menos!” – “Sei... se for por você elas eram da pesada... rs...” – “Então... mas aí que tá, os meus clientes pediam mais fotos de gorda. Aí eu já unia o útil ao agradável. Só gordona, tá ligado; 90 kg pra mais” – “Você tá tirando da minha cara” – “Não cara, rolava uma graninha legal” – “Mas ficar vendo gorda, de salto alto, se espancando ou pousando pra foto? Todo dia... cara.. isso não é vida!”.

“Porra cara... tava legal o trampo” – tive que pedir desculpa, pois acabei abalando meu amigo. Desconsiderei seu trabalho honesto. Também me senti constrangido, por isso pedi desculpa.

...

“Então! Mas aí surgiu uma foto pra mim. Uma gostosa cara!” – “Quantos quilos é gostosa pra você? Uns 100 kg tá bom né!” – “Não zoa porra! Essa era top mesmo” – “E aí, o que rolou?” – “Disse pra ela que era foto pra uma revista de moda, tal e tal... marquei pro outro dia, já acertado o valor... aí ela foi ao meu estúdio” –“Você tinha estúdio?” – “Uma espécie de estúdio...”.

A cara de Fábio era uma caveira vermelha, em carne viva. Eu deveria estar igual. Ele continuou: “Quando a mulher viu o tipo de foto, quis pular fora. Mas aí minha sócia trancou a porta. Demos umas porradas na gata até ela desmaiar. Vestimos ela. A hora que ela acordou eu estava gozando na cara dela!” – “Puta que o pariu, a que ponto chegamos ein!” – “Eu já estava obcecado pelo trabalho... aí minha sócia algemou ela na cama e fez de tudo. Foi tudo filmado!”.

Eu estava bêbado de vinho e atordoado, o que havia virado Fábio! Ele continuou. “Cara, aí fizemos o trabalho, quando terminamos, pagamos ela e saímos fora” – “Deixaram a mulher lá?” – “Não... demos um boa noite cinderela e a largamos na calçada. O problema é que o material fotográfico acabou ficando com minha sócia. Aquela vaca me ferrou!” – “Como assim?”.

“Fez chantagem com o namorado dela, que eu nem sabia que existia. Tirou uma grana vendendo as imagens e filmagens pro cara. Como eu não sabia que estava sendo perseguido, me descuidei. O cara que me matou foi quem pagou minha sócia!” – “Mas como você sabe disso? Você morreu cara! Com quem você falou?” – “Ele matou minha sócia também. Aí ela me disse”.

...

Após Fábio terminar de contar, se abriu um clarão bem na nossa cara, como se abrissem umas cortinas. Estávamos sendo ouvidos por várias pessoas sentadas. Uma espécie de teatro, com grande público. Olhei pra frente e vi na primeira fila duas poltronas vagas. O rosto do meu amigo não estava mais queimado, sua fisionomia era a mesma de sempre, sem marcas de facadas e nem bolhas de queimaduras.

“Parabéns Fábio, você contou sua história, falou a verdade pra todos que aqui estão presentes, agora vá até sua poltrona e sente-se. O próximo é você...”. Uma voz num microfone falou isso... percebi que o “próximo” era pra mim.

Ao ver meu amigo sentar na poltrona, perguntei pra voz: “Esse monte de gente fica aí sentado ouvindo as histórias dos recém chegados o tempo todo?” – “Pela eternidade meu nobre amigo!” – “E se eu não quiser contar minha história?” – “Ficará com essa fisionomia também pela eternidade!”.

Virei às costas pra multidão e caminhei em direção a escuridão. “Posso estar deformado e com uma bala na cabeça, porém posso caminhar. E em direção a escuridão eu vou... pois prefiro a incerteza da estrada. E que seja pela eternidade”.

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