sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Lembranças de um artista de ferro

É estranho ter um robô no seu apartamento. Mais estranho vai ser conviver com ele em meio às pessoas. Fazer dele um herói enigmático, além de problemático.

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Costumo dormir bem tarde. Jack estava capotado no outro quarto do apartamento. Afinava minha guitarra e olhava pra Arnoldo Xuatz Nigga no sofá. Toquei um ‘mizão’ e logo AXN reprovou meu desempenho.

- O que foi cara?
- Está desafinado!
- Puta merda cara, vai me dizer que toca guitarra?

Ele levantou e pegou o instrumento das minhas mãos. Sentou no sofá e afinou a porra da minha guitarra.

- Toca um som aí AXN.
- O que você quer ouvir?
- Qualquer coisa que seja rock n roll!
- Só sei tocar Ramones.
- Melhor ainda... manda ver.

Então ele começou a tocar ‘Now i wanna sniff some glue’. Observei e curti aquilo. Agora temos um artista de ferro, com um sistema neural cogumelado. Logo meu nobre amigo robô fez aquela careta estranha de quando vem o flash back do lisérgico. Aí ele começou a fazer um solo que Johnny Ramone jamais faria.

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É engraçado. Nosso herói às vezes tem uns chiliques e até baba. Quando terminou a música, ofereci um guardanapo pra ele limpar a saliva que caiu da sua boca. Ele me devolveu a guitarra. Guardei-a no case e comecei a mexer numas caixas que estavam num canto do apartamento há alguns dias pra eu limpar. Sabe aquelas lembranças do passado que às vezes são difíceis de esquecer?

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Comecei a tirar umas papeladas e fotos. Então vi uma de quando estive numa manifestação de rua, em Cascavel – PR.

- Isso foi demais! – disse AXN.
- Ué cara... como assim? Sou eu aqui! Como você pode saber se foi ou não foi ‘demais’?
- Não sei – e me olhou com cara de quem está pedindo ajuda... do tipo explicação.

Pensei em chamar Jack pra tentar me explicar isso também. Mas... vamos lá:

- Acho que você tem algumas das minhas lembranças AXN. Por isso também acha que esse dia foi ‘demais’. Será que tudo que eu lembro você também lembra?
- Não sei! – me olhou novamente com cara de quem pede ajuda... do tipo explicação (rs).
- Vamos ver se descobrimos!

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Então peguei um pano que havia comprado em São Paulo certa vez. No pano tinha a estampa de várias tribos diferentes e os escritos: “Quebra-se o preconceito com apoio mútuo”. Olhei pra ele com o pano na mão e perguntei:

- Aonde você comprou isso?
- De uns punks em São Paulo quando fui numa excursão de jornalismo com minha turma da faculdade.
- Caralho!
- Comprei também um cd do Devotos na Galeria do Rock, na mesma excursão.
- Eu sei que você comprou um cd do Devotos lá. Afinal... fui eu que comprei.

Ele me olhou novamente com aquela cara estranha.

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Acho que esse cara pode ser perigoso de alguma forma. Ele pode achar que minha mãe é a mãe dele. Que meu pai é seu pai.

Será que ele pensa que namorou minha ex namorada? É amigo dos meus amigos das antigas? Será que ele vai querer ficar com a mesma mulher que eu?

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- Essa foto aqui. Sabe quem são essas pessoas?
- Eu, a Deborah e o Rafa no antigo TNT em Cascavel.
- Espera aí cara... esse aqui sou eu... não você.
- Como assim?
- Como eu posso explicar isso pra você. Bom... sobre isso deixa pra quando o Jack acordar amanhã. Ele sabe melhor dessas coisas.
- Tá bom.
- Lembra do apelido do Rafa?
- Cogumelo.
- Você curte tomar um chá?
- Claro... colhi algumas vezes. Inclusive uma vez fui com meu amigo Bigode ou Márcio... como preferir, num pasto lá em Cascavel. Chegamos lá e não tinha mais cogumelo porque um pessoal já havia colhido tudo antes. Lá tinha fila pra fazer essas colheitas!

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Puta merda... agora eu falo comigo? Isso está estranho demais. É muita pira pra minha cabeça. Estou frente a frente com um cara que parece o pequeno exterminador do futuro, mas com alguns códigos neurais que são meus, misturados com sei lá quantos ml de chá de cogumelo. O lado positivo é que posso saber como sou! Será que isso é uma boa? Acho que vou me decepcionar. Deixa essa ideia pra lá!

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- AXN... olha só. Essas lembranças que você tem são muito legais. É muito bom lembrar essas coisas. Mas quero que entenda o seguinte: omita os nomes... sempre! A sua vida daqui pra frente vai ser uma loucura meu amigo. Então vai chegar um momento que será melhor você esquecer certas coisas. Isso não é por você... nem por mim... mas são por essas pessoas que você tanto gosta... ou melhor... que eu tanto gosto...

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Acho que é mais ou menos isso. Não podemos brincar com nossa atual situação. Voltamos da Amazônia e agora estamos em Curitiba. Arnaldo Xuatz Nigga vai começar a atuar. Eu e o Jack amanhã começaremos a traçar e mapear trajetos e estratégias. Ele estará em todos os lugares do mundo. Ao mesmo tempo em que é uma cara legal – porque eu sou um cara legal – pode se tornar um cara muito nervoso – porque eu posso me tornar um cara muito nervoso!

Essa parte em que me incluo não tem nada a ver. Tenho alguns fantasma e que provavelmente AXN carregará consigo, mas nada será comparado ao que está projetado pra esse jovem andróide. Ele fará parte de uma nova etapa da história das guerras e conspirações.

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Ele esbugalhou os olhos dessa vez. Deixou a cabeça inclinada pro lado esquerdo, puxou a boca também pro lado esquerdo e mostrou os dentes de baixo. Fazia uma careta engraçada. Acho que está batendo o cogu!

É engraçado, o cara começou a passar a mão em frente ao rosto. Aí começou a sorrir. Pegou as fotos que estavam na caixa. Tinha muita foto. Elas retratavam muita coisa da minha vida. Ele pegava uma por uma.

Foto de acampamento na Ilha do Mel, foto no Fórum Social Mundial. Foto da banda Contestado. Fotos de Foz do Iguaçu. Fotos da faculdade.

Aí vem aquelas lembranças! Muitas boas... muitas ruins... muitas inexplicáveis!

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- Epa epa epa... aonde você vai com essas fotos aí meu camarada?
- Eu não posso dizer! Você disse pra eu omitir os nomes!
- Devolve essas fotos aí. Está pensando que vai pro banheiro com as fotos dessas mulheres aí? Tá maluco?

Ele começou a babar e travou. Deu um bode de riso no AXN que até eu não me aguentei. Dei um monte de guardanapo pra ele.

Ainda bem que esse ‘animal’ me obedece. Devolveu as fotos. Olhei e me veio um monte de ideias.

Existem lembranças que são melhores dentro de uma caixa.

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