Capítulo I – Eis que inauguro meu cemitério ideal
“Você!
Mais um você! Mais um de mim! Mais um de nós! Nós vamos embora. Eu os mando
embora. Não há mais amigos pra compartilhar. Não há mais lágrimas. Só mais um
você. Só mais um de vocês. Só mais um de nós!”.
"Enxugo as lágrimas. O Neto foi o último. Enterro agora meu último amigo. Que praga é essa que só atinge os pobres? Sei que minha hora está
próxima. Sou remanescente. É questão de tempo pra outro assumir meu lugar. Algum pau mandado de merda. Logo vem outro pra cá e ele vem, primeiramente, pra me
enterrar".
"Estou
cansado de enterrar só pobre. Só meus semelhantes. Estou cansado".
...
Cansado
de enterrar só pobre o coveiro de uma pequena cidade resolveu mudar seu ritual.
Ele
morava num lugar predominantemente agrícola. Cercado por grandes fazendas. Os
antigos moradores perderam suas propriedades. Período marcado pela chegada de forasteiros
com mais poder bélico, vamos assim dizer.
Com
amparo de um sistema vigente, implantaram a “arte de puxar cerca”. E o sangue
foi derramado. Os hipócritas no poder inventavam diversas justificativas pra
mortes dos pobres. Todas falsas. Muitas famílias foram embora. Muitos inocentes
morreram e ainda morrem.
...
“Eu
não espero mais um minuto que a consciência esfaqueie a alma desses malditos.
Eu vou acabar com isso. Neto foi o último. Prefiro não ver mais essas pessoas
sendo destruídas dessa forma. Aqui não há justiça. Aqui não há direitos. Há
covardes. Há dinheiro. Há poder. Há tudo menos respeito. Ou você entra na dança
ou você dança”.
...
Na
sua cabeça, o coveiro não administra mais a situação.
O sentimento
de vingança predomina e talvez seja isso que o mantenha vivo. Que o faça jogar
o jogo.
Ele sabe
também que sua vingança, se acontecer, precisa ser milimetricamente bem
sucedida. Caso contrário, o subterrâneo é seu destino.
...
E em
mais um dia de trabalho, lá está ele a abrir buracos na terra. Normalmente pra pequenos
agricultores, pessoas que o coveiro conhece desde criança.
Pessoas
que o viram crescer, pessoas amigas. Ele cansou de enterrar amigo
financeiramente fodido igual a ele. Porém, esse era seu ganha pão. Herdou a
profissão de coveiro do seu “padrasto”.
Da
sua família de origem só sobrou ele. Todos trabalhavam no campo, em pequenas
propriedades. Foram mortos.
Sua
história é uma mistura de sorte e tragédia. Quando nasceu, por complicação no
parto, sua mãe morreu. Seu pai o rejeitou.
Então
o coveiro da época o adotou. Era solitário, ajudou a fundar o município. Após
alguns anos morreu e o jovem assumiu a função.
Hoje
o coveiro lembra os ensinamentos daquele homem que o salvou. O agradece
profundamente.
...
O
contexto era de genocídio da máquina contra pessoas inocentes. Havia na pequena
cidade as famílias que chegavam com o aparato do governo. Eram grupos que se
organizavam entre si. Todos agiam pressionados pelo topo da pirâmide.
...
Agora
este coveiro, o mesmo que aceitou enterrar os próprios familiares, estava em
dúvida se continuava na profissão que amava.
“Quando
levo a carne pro buraco liberto a alma. Mas o que vejo é muita pessoa boa, que
só faz o bem, se desintegrar. Agora essas almas injustiçadas se fizeram
presente e me mostraram outro caminho. O caminho da justiça. O caminho de
Jesus. O caminho do jovem e bravo justiceiro”.
...
Decidiu
então, diante de sua constante solidão, tornar-se um semeador. Sentiu ferver em
suas veias o sentimento de libertar as almas que estão prejudicando o bem
comum.
...
“São
somente as mesmas almas que vagam. As almas da justiça. As almas que se foram
aqui e em vida pregaram o bem comum. Um mundo paralelo clama pela chegada de outras
almas, as que precisam ser punidas pelo que fizeram quando eram ferramentas
humanas. Agora eu preciso peregrinar e semear o cemitério ideal!”.
...
Num
momento de inspiração, assumiu o compromisso de alimentar a terra somente com a
carne dominantemente econômica. Decidiu levar a sete palmos em direção ao
núcleo terrestre os semelhantes aos que o mandavam enterrar pessoas de bem. Os
que faziam a sociedade acreditar que as vítimas eram o problema.
Após
planejar o que fazer, definiu sua
estratégia como “o método de punição kamikaze”...
Deitado
entre covas vazias o coveiro olhava pro céu estrelado. Abriu os braços como se
estivesse crucificado. Encheu as mãos e as fechou, apertando aquela terra
vermelha.
...
Na
noite em que o coveiro sumiu da cidade, morreram o delegado e sua mulher.
Também o juiz e seu namorado. Policiais folgados e corrompidos. Também o prefeito
e alguns políticos. Ao todo foram dez corpos. Todos pegos de surpresa, pois
viviam num estado tão grande de comodidade que nem viram a morte chegar.
...
Somente
o padre da cidade o ajudou na fuga. Aquele senhor se tornou um missionário por
conveniência. Viu uma forma de sobreviver como padre. Mentiu sua identidade e como
tinha grande oratória permaneceu como proclamador da palavra do senhor.
Viu
na ajuda ao justiceiro divino uma maneira de ser perdoado por tantas mentiras. “Trace
seu caminhada para o céu meu filho!” – disse o padre ao coveiro.
...
Na
ação o coveiro enterrou os corpos na mesma noite. Não teve dificuldades, pois antecipadamente
havia deixado as covas prontas.
Então
ao desligar do gerador de energia da pequena cidade ele caçou seus alvos. Conhecia
cada curva das ruas, cada pedacinho de chão daquele pequeno lugar. Seja no sol,
seja na escuridão. Ele conhecia tudo. Durante anos vagou nas sombras sem que
ninguém percebesse. Sabia que muitos dos seguranças e policiais da cidade eram
nomeados por indicação. Não tinham competência pra proteger nem a si mesmo. E
como tudo era calmo por lá, já estavam acomodados.
A
caça durou da meia noite até o amanhecer. Quando terminou o serviço, deu tempo
pra se lavar e pegar o primeiro ônibus que o tirava daquela terra.
...
No
seu primeiro cemitério ideal, percebeu a leveza que aquela ação causou na sua
alma. A partir daquele dia, seu destino estava traçado: por onde passasse
plantaria a semente.
Muito bom!
ResponderExcluirSempre essa luta de classes, que nos acompanham desde Sempre. Será que acaba na profundidade de 7 palmos do chão"
Comparo, o velho coveiro,a ilustres, que por este mundo passaram, lutando em favor do bem comum. Cito um, no muito de muitos poucos: Martin Luther King Jr...
Que como o coveiro; plantava: paz, amor, igualdade, justiça...
http://diempoetico.blogspot.com.br/2013/12/tempo-livre.html
Bacana cara, é por aí mesmo.
ExcluirEm breve tem o outro capítulo.
Legal teu blog...
Temos que plantar, além do que já foi dito, muito literatura e leitura - das mais variadas - pra todos.
Valeu.