quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O COVEIRO

Capítulo III - O mistério está no futuro




“É quando se sente a rejeição que o homem se torna imprevisível. Ele pode criar uma bolha em volta de si e se enterrar. Também pode enfrentar seus medos e sair do ponto passivo rumo ao agressivo. E há o rejeitado que desperta, no próximo, o sentimento da compaixão”.

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Quando o hoje Coveiro era ainda um bebê indefeso, foi culpado pela morte da sua mãe no parto. Seu pai biológico não aceitou aquilo como algo natural, uma consequência de um parto complicado. Passou a ter ódio de uma criança indefesa. Ao mesmo tempo em que a repulsa surgiu num pai desesperado, também a compaixão nasceu num homem solitário.

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O primeiro coveiro daquela pequena cidade era uma pessoa misteriosa, porque não dizer medonha. Era uma incógnita.

Chegou à região quando nada lá existia além de pequenas propriedades. Poucas famílias. Ele era líder de um grupo de milícia armada. Foi designado por grandes proprietários de terra pra promover um verdadeiro holocausto na região.

Era tecnicamente perfeito na execução do seu trabalho. Matava sem piedade. Com o tempo, passou a enterrar os corpos também, pois fora orientado pelos ruralistas a “sumir com as provas”. A partir daí ele criou um cemitério municipal. Com o tempo mais pessoas morriam, mais covas ele cavava e mais famílias poderosas chegavam pra usufruir dos “novos” loteamentos.

Sem dúvida ele ajudou os ruralistas a colonizar toda uma região antes pacífica e familiar. Era o pesadelo da paz e os inocentes eram seu pesadelo.

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“Em vida eu vou me redimir. Com os olhos abertos enxergarei uma nova porta. Essa será minha redenção. Ao fechar os olhos jamais terei paz. Jamais! Vago pela escuridão com uma sombra jovial a me seguir. Em tempo, ela será eu. Após isso, a minha extinção será seguida de um lampejo de luz, que se refletirá e transformará esta sombra em esperança. Assim sonho!”.

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Toda vez que aquele homem fechava os olhos, a escuridão o falava: “da sombra virá esperança”. Ele sempre acordava no meio da noite, tomava um gole de cachaça e saía pela cidade a vagar na escuridão. 

Em cada palmo de terra daquela região brotava sangue em seus olhos. Não enxergava esperança. Achava que seus delírios eram sinais de que finalmente a morte o encontrara.

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Deitado delirando o Coveiro dizia: “da sombra virá esperança! Da sombra virá esperança! Da sombra virá...”.

Então aquele homem é surpreendido:

“Toc toc toc” – batida na porta, choro de bebê e mais batida na porta.

Demorou um pouco pra encontrar sua consciência enquanto delirava. Num desespero súbito gritou: “já vou!”.

Ao abrir a porta um susto! Uma criança carregando um bebê. Sangue e choro.

- Mas o que é isso? – disse o Coveiro.
- É meu irmão. Meu pai disse pra eu sumir com ele. Não sei o que fazer. Se eu voltar com o bebê... ele me mata.
- Por que não joga esse bebê no rio?
- Eu tentei, mas não consigo! Ele é meu irmão...  – e começou a chorar também, como só as crianças choram ao perder a inocência.
- Pare de chorar! Parem de chorar! Que bosta! O que você quer que eu faça? Por que veio até mim?
- Enterra ele pra mim?

O olhar de desespero daquele pedido fez o coveiro tremer pela primeira vez na vida.

- Como é que é? – disse assustado ao menino. Seu espanto foi tão grande que até ele se surpreendeu com sua reação.
- Todos dizem que você é um monstro e monstros não amam! Por favor, só você conseguirá enterrar meu irmão... – e colocou o bebê em frente ao coveiro e correu, chorando, desesperado, sem olhar pra trás.

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Aquele homem jamais tinha ficado tão perto de um bebê vivo. Já havia mirado em alguns e só se aproximou depois de já ter atirado. “É assustador!” – pensou ao olhar nos olhos do pequeno ser. Pra assustá-lo ainda mais, a criança havia parado de chorar.

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Muitas vezes uma história substitui a outra. Mesmo com o passado presente, o mistério está no futuro.

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A pessoa que tinha tudo pra ser o pior criador, deu seu melhor. “O que eu sei fazer de melhor? Matar!”.

O coveiro não poderia parar com seu trabalho por causa de um bebê. “Imagina só o que o patrão vai pensar de mim? Se ele desconfiar que meu coração tá amolecendo, não vai amolecer pra cima de mim. Aí vem outro aqui pra me enterrar”.

O menino foi criado num ambiente sombrio. Seu padrasto não era ausente. Saía às vezes pra matar em nome do seu patrão. A vantagem é que ele matava e enterrava. Morava praticamente dentro do cemitério. Por isso, quando preparava as covas e enterrava os corpos, seu bebê o fazia companhia.

Mesmo com o contexto negativo, aquele homem, no momento que se deparou com o bebê, enfrentou o que achava ser um abismo sem ponte. Mas atravessou uma barreira anteriormente impossível e decidiu criar “seu menino” sozinho.

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A criança cresceu. O mundo foi mostrado pelo seu padrasto. Aquele homem sabia exatamente o que pretendia com aquele presente.

“Eu vou fazer desse menino a mais perfeita ferramenta de vingança que esse mundo já viu. Um grande justiceiro. Ele será como eu, porém o ensinarei a destruir-me. Farei dele a mais perfeita arma contra pessoas como eu fui; como eu sou. E sempre serei. Só vou parar quando a minha criatura acabar com a minha vida”.

Frio. O menino tornou-se um ser sem sentimento. Depois de um tempo começou a ser chamado de “Primo”. Foi normal ele ganhar um apelido, com o tempo começou a sair pela cidade, frequentar a escola e ter uns poucos conhecidos.

Quando o “Primo” começou a se socializar, o Coveiro teve que inventar uma história: disse que a criança era filho de um primo, que teve toda sua família assassinada. “Só sobrou ele” – mentia pra quem perguntava.

A principal transição seria no enterro do seu pai biológico: “ele vai enterrar o filha da puta que o abandonou” – pensava diariamente o Coveiro.

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Após algum tempo, o Coveiro iniciou um trabalho de desocupação das áreas da região de origem do menino. Eram pequenas propriedades em locais estratégicos. Então todos os que moravam na região estavam com seus dias contados. O “Primo” sempre soube da sua história, quem eram seus parentes, sentia algo dentro de si, mas não entendia o que realmente era. Seu foco já estava traçado em parceria com seu padrasto. Sua vida seria solitária.

Finalmente o patrão do Coveiro ordenou que ele fosse puxar cerca na região da família do menino. Ele e seus homens foram até as casas na região e mataram todos. Tinha tanto corpo que despejaram aquele monte de gente com duas caminhonetes cheias. Homem, mulher, criança, idoso. O Coveiro e o “Primo” enterraram todos.

A cada cadáver um novo aprendizado. Ele treinava golpes de faca nos mortos. O Coveiro o ensinou a se defender utilizando cadáveres.

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“Essa é a transição. Agora ele está pronto. Chegou a minha hora de fazer o que precisa ser feito”.

- Você está pronto.
- Pronto? Mas já?
- Sim. Você está pronto. Tá na hora.
- Tudo bem. Se você tá dizendo que posso seguir sozinho, eu sigo.
- Olhe. Você sabe o que fazer. Deixa o tempo dizer quando será a hora de partir. Enquanto isso, você continua como coveiro. Um coveiro comum. Não igual a mim. Fique tranquilo, já está tudo certo com meu pessoal. Eles sabem o que fazer se eu partir. E sabem como lidar contigo.

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Numa invasão do seu bando, o Coveiro também detalhou uma estratégia paralela com seu filho. O menino iria pegar outro caminho e levar uma espingarda.

- Você vai me matar. Os outros vão achar que foi a família que será invadida que atirou em mim. Vão acabar com todos, sem piedade e sem fazer qualquer pergunta. É assim que funciona. Enquanto isso você volta pra casa. Aí é só esperar. Você terá muito trabalho. Inclusive eu darei um pouco de trabalho pra você.

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Enterrou seu pai biológico. Também seu pai de criação. Treinou facadas em ambos. Se preparou pro chamado. “Um dia você vai cansar disso tudo. Aguentará enterrar gente da sua gente. Gente como você. Neste dia você terá esperança. E neste dia você se tornará um homem iluminado. Não esqueça: Jesus era contra pessoas como eu. Como meu patrão. Ele mataria esses ladrões filhos da puta. Ele morreu por justiça. Morreu por pessoas comuns. Pobres. Iguais as que eu matei e mato. Por isso você deve me matar. Todos os que estão ao meu lado devem morrer também. Você será o novo Jesus. Um Jesus criado por um coveiro. Um Jesus coveiro”.

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Hoje o Coveiro lembra suas conversas com seu padrasto e tem um conforto na alma. Sabe que aprendeu as lições e que seu professor ficaria orgulhoso. Passou a crer ainda mais naquele homem que hoje ele aceita como pai.

“Não esqueça. Você terá muito trabalho pela frente. Justiceiros como você precisam existir pra sempre. É por isso que as pessoas sentem tanto a falta de Cristo, pois não existem mais justiceiros. No futuro as pessoas rezarão por você. Chegará o dia em que as pessoas depositarão a vida, não mais a morte, num coveiro”.

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